Thursday, March 2, 2017

Achados e perdidos


Preciso encontrar meu passaporte brasileiro, que se exilou de mim.
Desde que cheguei de Portugal, em novembro do ano passado, que não sei do seu paradeiro.
Estará no bolso do paletó que me acompanhou na viagem?
Será que caiu no chão e foi encontrado pela mulher da limpeza, e colocado num escaninho do departamento de achados e perdidos de algum lugar?
Terá sido esquecido num café de aeroporto e hoje traz a cara de um terrorista, um traficante de drogas, ou outro contraventor no lugar onde um dia existiu uma foto minha?
Eu gosto da minha fotografia naquele documento.
Estou dez anos mais moço e meu rosto ainda não era esse mapa pluvial do estado de Minas Gerais.
Estou dez anos mais novo e o mundo era um lugar bem mais jovem, ali.
Há dez anos ainda ‘não havia para mim Donald Trump, ou a sua mais completa tradução’.
Não havia Neymar nem Michel Teló, e meu time ainda não havia flertado com a Segunda Divisão.
Há dez anos eu ainda chorava as dores de outros onze de setembro.
Desde então, aumentou o buraco na camada de ozônio, subiu o preço da gasolina, árabes e judeus continuam na mesma e mesmo eu, continuo por aqui, na mesmíssima.
Só que mais gasto.
E seu eu precisar ir para o Brasil? – pergunto aos meus botões.
E se explodir uma guerra, e eu tiver que fugir como um cão, com o rabo entre as pernas? – pergunto a minha covardia.
Preciso encontrar a coragem para não fugir, é verdade.
Mas antes disto, preciso encontrar o meu passaporte.
E preciso de muito mais.
Preciso encontrar a coletânea de Carlos Drummond de
Andrade, e ler em voz alta o Poema das Sete Faces.

(…) Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração (…)

Preciso encontrar minhas sete faces e, se preciso for, dá-las a tapa, pois ainda há tempo.
Ainda há tempo de mudar de opinião.
De mudar de ares, de roupa e de vida.
Há tempo de virar o jogo.
De ganhar o jogo.
De criar novas regras e de reinventá-lo, o jogo.
Tempo de rabiscar montanhas e dar novas formas às nuvens.
E de pagar o preço.
Pois ainda há tempo de cuidar da saúde e retomar as caminhadas matinais.
Preciso encontrar, ainda, o amor próprio, a inteligência de querer ser longevo, de querer viver mais e melhor.
Inteligência, pois sim.
E encontrar os meus óculos, perdidos num lugar interior.
Mas não os óculos, esses que me permitem enxergar o mundo com meus dois graus de astigmatismo no olho esquerdo, e um ponto cinco de miopia no direito.
Preciso encontrar aquele par de óculos especiais que permitem enxergar-me neles, peneirando, na leveza dos aros, o sol da cegueira que me desilumina tristemente os dias.
Este par de óculos que me permite ver joio e joia, menino bonito de mim.



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