Friday, December 30, 2016

Sexta, 30 de Dezembro de 2016


Cobrir de flores 
a última sexta-feira do ano
como se ela fosse uma namorada
Como se fosse uma mulher morta


(e perfumar o que terá sido o seu derradeiro suspiro).
Como se ela fosse
Como se tivesse sido.

*

o ano de 2016 agoniza 
e agonizamos junto

E terão sido para nós
estas Papoulas 
de vento e pólvora

(cimento, resina e ópio).


*

Wednesday, December 14, 2016



A vida dá 
a vida tira
A vida
te faz inteiro
A vida
te descostura.

(Roberto Lima)

Monday, December 12, 2016

Anunciação

 
Acordei,
calcei o coturno com bico de aço,
peguei o taco de baseball
e o soco inglês.

Tomei dois Engovs
Mastiguei um Rivotril
E bebi meu café amargo

Estou prontinho.

Pode vir, vida!

 

Thursday, December 8, 2016

Papoulas de Kandahar


Amigos, 

estou preparando Papoulas de Kandahar, meu novo livro. Trata-se de um trabalho "solo", sem a presença do parceiro Bispo Filho, que também está gestando uma obra individual.
São 32 crônicas reunidas em um livro que apresenta algumas novidades. Continuarei trabalhando de forma independente, apesar de ter na mesa algumas propostas de editoras. Preferi continuar dono de minhas dores e pequenos delírios, sem perder o direito sobre eles mesmo depois da morte.
Os textos de apresentação serão escritos por leitores e não por escritores, jornalistas ou críticos literários. E as novidades não param por aí. Haverá mudança também no formato.
Em breve anunciaremos uma turnê de lançamento com paradas em várias cidades do Brasil e do mundo. Tomara que haja um abraço seu guardado para mim aí onde você mora.

Por enquanto é isto. Vamos nos falando.
Beijão do
Roberto.

.

Friday, November 25, 2016

Extravio


Algumas coisas nasceram
Para não ter fim
Laranjas pela metade
Histórias que não foram contadas
O não que abraçou o sim

A flor que brotou
E não floresceu
O amor que amou
Mas adoeceu
O caminho sem chegada
A carta extraviada
O tal não dentro do sim

Tem a sina de uma bala perdida
Cambaleia em direção ao alvo
Como a faca rasgando a água
Como o fogo mastigando a carta
Como o vento que penteia as palmas
Como a pedra que nasceu do pó
Como o tempo que engole os dias
Como o corpo, despido de alma,
Que foi beijar a terra
Longe, bem longe
de mim.

* A notícia de que meu ídolo Roberto Mendes está musicando estra letra minha, escrita hoje, é uma espécie de redenção para um dia que tinha tudo para me empurrar para o abismo.
Deus existe.

.

Da ironia da vida


é preciso haver a tristeza 
para saber o que é felicidade
barulho para apreciar o silêncio
e ausência para valorizar a presença.

(Maria Paula Alvin)

PS: naquilo que penso em meus velhos. E não só. Naquilo que penso.

Thursday, November 24, 2016

Elegia 1938



(Carlos Drummond de Andrade)

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações no encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas de dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.

.

Wednesday, November 23, 2016

A medida Exata





De nós dois ficou esta estória 
Mal contada e sem final feliz
O buraco bem no meio do peito
E pouca linha para cerzir a cicatriz

Ficou um grafite no muro
Este buquê de folhas secas
Um baú de pedras murchas
E um bolero nariz com nariz

O que fazer da minha tristeza,
Como beber de um gole só
A medida exata de tanta solidão?


* (Nova parceria com Lula Barbosa)

Friday, November 18, 2016

Sete Saias


[O primeiro poema]

Nazarena
O seu receio contido
Dentro das sete saias
Não cabe
Na tristeza infinita
Do olhar que vislumbra
A mágoa
Toda vez que o seu homem
Atende o chamado do mar
E vai...

São sete desejos, sete sinas
Sete  redes, sete medos
Sete fomes, sete peixes
Sete lençóis de cambraia
Sete cores do arco-iris
Sete olhares no Atlântico
Sete luas, sete lutas
Sete naufrágios
Sete náufragos

São sete cruzes na praia
E sete são as cicatrizes
Que nunca irão fechar
São sete mortes,
Sete homens
Sete punhais de Netuno
São sete mulheres
de negro.
E negras
São as sete saias.

Nazaré, Portugal, 
13 de julho de 2016

* musicado por Dalmir Lott

Thursday, November 17, 2016

A metade da sede


(O Segundo Poema)



O copo está 
metade cheio 
e metade vazio


Enquanto uma metade agoniza na faixa de gaza
A outra transcende em Xangri-Lá

Uma metade é festa e alegria
E a outra é luto e tristeza

Uma metade é calmaria
a outra é ventania e tormenta

Há uma metade que condena 
E há outra que anistia

Uma delas está cheia de vida
E a outra agoniza, moribunda

Metade que é pura esperança
Metade que é leite derramado

Metade que é a magia do encontro
E a outra a lonjura do adeus

Metade que é líquida, 
Metade que é ar

Nosso copo está
Metade vazio,
Metade cheio

Com qual metade
Saciará a sua sede?


Coimbra, 14 de Julho de 2016

Wednesday, November 16, 2016

Das coisas que esqueci sobre mim



A poeta baiana Tânia Contreiras lançou-me o desafio para que entrasse em uma espécia de corrente iniciada nas redes sociais e enumerasse 30 coisas a meu respeito.
Eu jamais diria não a ela, que é uma pessoa muito presente em minha vida, amiga ímpar, a quem eu não diria não mesmo se estivesse me pedindo um rim.
Portanto, aí vão as 30 coisas das quais, às vezes, eu mesmo me esqueço:

1) Tenho que beber pelo menos três uísques antes de entrar em um avião.
2) Quando menino fui atropelado por um jipe e salvo de um afogamento por um ladrão. Que eu me lembre, em três outras oportunidades a morte passou de raspão.
3) Adoro pão com linguiça e rapa de arroz.
4) Gosto de cozinhar. Muitas vezes, cozinho para não pirar.
5) Adoro futebol. Cruzeirense de ir ao estádio. De "ver" o jogo pelo rádio.
6) Fui "vencedor" de um único concurso literário em minha vida.
    Foi uma 'tarefa' no grupo Escolar Maria Ortiz, em Barra do Cuieté-MG; a redação "Meu Brinquedo favorito" venceu "o ponto" para a equipe Azul, do terceiro ano primário.
7) Quando cheguei aos Estados Unidos trabalhei de pasteleiro (fazia Pastéis de Belém em uma padaria portuguesa).
   Fui também lava-pratos, ajudante de cozinheiro, garçom, funcionário de empresa-de transportes e servente de pedreiro. Aliás, o pior servente de pedreiro que a construção civil de New Jersey já conheceu.
08) Comecei a escrever coisas visitando um pistoleiro de aluguel condenado a 380 anos de prisão, em um presídio de Juiz de Fora. Eu tinha 18 anos.
09) Meu pai não queria que eu vivesse de escrevinhações. Fez de tudo para que eu fosse militar, como ele. Na contra-mão mão de sua vontade, minha mãe presenteou-me com uma Olivetti portátil, que ela pagou em 12 suadas prestações na falecida Mesbla.
10) Sofro quando tenho que usar terno e gravata.
11) Não gostaria de ficar careca.
12) Fui pai pela primeira vez aos 16 anos de idade.
13) Tenho três filhas.
14) Casei-me ao meio dia, em Curitiba, o sol estava a pino e tive câimbras durante o sermão do padre. Era outubro e um bando de borboletas pousou nas pessoas à saída da igreja.
15) Toda vez que alguém me chama de “jovem”, fico constrangido e respondo: 'Ex-jovem'.
     Fico achando que esta pessoa está tentando me vender um par de quixutes.
16) Adoro Portugal. Pudesse, iria várias vezes por ano a Portugal.
     Tenho vários ossos lusitanos em meu corpo.
17) Eu me sinto mais mineiro do que qualquer outra coisa.
     Muito mais do que brasileiro ou norte-americano, eu sou mi-nei-ro. De Minas Gerais.
18) Se tivesse que fazer uma tatuagem, tatuaria o triangulinho vermelho da bandeira de Minas Gerais no bíceps.
19) Cheguei aos Estados Unidos aos 21. Tenho 53. Vivi toda a vida adulta no estado de Nova Jersey.
20) Quando comecei a escrever queria ser uma espécie de Augusto dos Anjos menos pessimista. Depois queria ser Drummond e depois, Roberto Drummond.
21) O livro Hilda Furacão, de Roberto Drummond, é dedicado a mim. Também a mim, que fique claro. O que me honra da cabeça aos pés.
22) Tive uma produtora de shows de MPB em sociedade com dois grandes amigos nos EUA. Fizemos coisas que julgo importantes por aqui.
23) Sofro quando entro em um lugar e está tocando axé, sertanejo, pagode ou "fanque". Este é um dos motivos porque vou pouco aos restaurantes brasileiros de Newark.
24) Parei de fumar no dia 1º de dezembro de 2011, após escalar - de carro - um poste da South Street. Carro e cara se arrebentaram.
   Parei como forma de agradecimento pela oportunidade de continuar entre os vivos. Eu era fumante desde 1980.
25) Eu não gosto de ir a festas de crianças, nem de ir à Disney com minhas filhas.
   Não fui. Não vou. Não irei.
   É por estas e outras que ainda morarei no inferno.
26) Não gosto de praia. Nem de carnaval.
27) Acho as obras de Niemeyer uma bobagem. A forma não segue a função.
28) Tenho preguiça mental de falar inglês. Minha tecla SAP está quase sempre desligada.
29) Recentemente tive muita vontade de voltar pra Minas Gerais e ir morar numa casa de montanha e ser feliz para sempre.
    Esta vontade está passando. Vai passar.
30) Tenho os melhores amigos que o afeto pode comprar.

Monday, November 14, 2016

Alçapão



Estivemos
Os dois dentro
Do mesmo
Momento

Ruminando
Mágoas
Mastigando
O tempo

E
Bem debaixo
Dos pés
- Naquilo
Que um dia
Chamamos 
 chão -

Escancarando
A nossa ferida,
Abriu-se 
A boca faminta
De um enorme alçapão

Wednesday, November 9, 2016

O brinco


(Para o Pitico)

Quando cheguei aos Estados Unidos, em 1984, fui dividir um porão com um conterrâneo meu, o Pitico.
Ambos vínhamos de Governador Valadares, mas só ficaríamos amigos por aqui. Fomos amparo um para o outro, tomamos porres homéricos chorando a saudade de casa e transbordamos incertezas que não couberam nos nossos copos. Juntos, enfrentamos o banzo dos primeiros anos, a dificuldade da língua e a brutalidade da vida de imigrante. Tivemos um ao outro. Parecíamos irmãos.
Um dia Pitico apareceu em casa com um par de brincos, algo que começava a virar moda entre os jovens daqueles dias. Relutei, mas aceitei perfurar a orelha esquerda e colocar ali uma argola de ouro.
Relutei, porque sabia que aquele brinco não seria bem recebido em minha casa, lá no Brasil, já antevendo a reação contrária de meu pai. Mas aquele gesto dele selava uma espécie de fraternidade entre nós dois, algo que nos irmanaria para o resto da vida, como realmente aconteceu.
O relacionamento com meu pai sempre foi permeado por amor e rigor.  Se não faltava carinho, abundava também a incompreensão, fruto do conflito de gerações e da formação dele.
Ele era militar.
Eu era militante.
Filho do seu Antônio não andava cabeludo, não frequentava mesa de carteado e evitava más companhias.
Ele queria o meu cabelo curto, como o dele. E eu queria mudar o mundo fazendo parte de uma revolução.
Ele queria que eu entrasse para a caserna, como ele, mas eu já havia sido mordido pelo marimbondo das palavras.
Arriscar a vida em um país estrangeiro foi uma porta de saída para aquela incômoda situação. Tanto que, em 1984, eu me mudei de mala e cuia para Nova York.
Em 1988 tive que ir ao Brasil para uma entrevista de legalização no Consulado norte-americano, no Rio de janeiro. Seria a primeira vez retornando à terra natal, após um período de quatro anos de espera e toda espécie de provações.
Fui ao Rio, resolvi minha situação, mas antes, fui a Governador Valadares abraçar meu pai e rever os amigos que ficaram por lá.
O ônibus da Viação Gontijo chegou à rodoviária por volta de duas da manhã. Pude vê-lo ao lado de Bispo Filho, aguardando-me, com seus pescoços espichados, tentando me reconhecer detrás do escuro do vidro do lotação.
Desci as escadas e pude notar o sorriso de meu velho se desfazendo gradativamente. Aquele moço cabeludo que desembarcara não era o filho que partira daquele mesmo lugar alguns anos antes.
Quando nos abraçamos, logo após o pedido de bênção, ele sussurrou ao meu ouvido:
   - Tira!
   - Tirar o que, meu pai?
   - Esta aberração enfiada na sua orelha.
    Levei na brincadeira, prometendo que falaríamos sobre o assunto na manhã seguinte, o que aconteceu logo na mesa de café.
   - Filho meu não usa brinco, disse antes mesmo de desejar bom dia.
   Meu velho deixou claro que "homem de verdade" não usa brinco, reflexo de sua formação antiquada e da homofobia aprendida no quartel da polícia militar.
   Levei na esportiva e argumentei que índio usa brinco e ninguém duvidava de sua masculinidade.
   Ele não se comoveu.
   Apelei para os temíveis piratas, sanguinários, couraçados, invasores, 'machos pra caramba', mas ele nem se coçou.
   Não teve jeito. Tirei o adereço da orelha e o coloquei no bolso. Estava encerrada a sessão de tortura, o que acalmou os dois durante os quinze dias que fiquei em sua casa. Tentei usar o brinco na volta aos Estados Unidos, mas sempre me lembrava das palavras dele, até que decidi-aposentá-lo definitivamente.

    Quase três décadas depois, retorno ao Brasil para visitar meus pais. Estava sentado na varanda da casa bebendo uma cerveja, quando ele se aproximou. Sentou-se ao meu lado, com ar solene, e puxou uma conversa.
      - Filho, eu estive pensando.
      - Sobre o que, meu pai?
      - Sobre aquela conversa do brinco que tivemos há muitos anos.
        Fiz cara de paisagem. Não atendi aquela abordagem. Ao que ele sorriu, timidamente, antes de dizer.
     - Acho que você já pode usar brinco. Todos os artistas usam. Os jogadores de futebol também. E praticamente todos os rapazes daqui da rua usam.

 Achei bonito o seu gesto, mas, trinta anos depois, não fazia mais sentido.

     - Obrigado, pai, mas eu não sou mais um rapaz. Eu fiquei velho demais para usar brinco.
   
   Retornei aos Estados Unidos e, alguns dias depois, recebi a visita de Pitico, que não via desde o ano passado.
    Saímos para tomar um café e colocar a prosa em dia, pois ele está enfrentando bravamente um câncer no estômago. Alegro-me: ele está vencendo a a batalha. Está confiante.
    Olho para a sua orelha e o brinco colocado três décadas atrás ainda está lá.
    - Você continua usando o brinco, observei.
     Ele respirou fundo e devolveu com um olhar de decepção.
    - Estou. Mas você tirou o seu.
 
Nos despedimos, ele entrou no carro e se foi. Fiquei com aquilo na cabeça.
Naquela mesma noite, chegando em casa, pedi um brinco emprestado à minha e filha e reabri, na hora, o buraco que o tempo se encarregou de fechar. E em solidariedade ao Pitico, enquanto ele estiver em sua batalha contra a doença, eu o usarei. E talvez não o retire nunca mais.
Em solidariedade, é verdade, mas principalmente porque um pacto de irmandade para o resto da vida não deve ser quebrado. Ainda mais com a bênção de meu pai.

.

Monday, November 7, 2016

Profecia


Nada será como antes

Depois do seu cheiro
Na minha pele
Dos nossos rostos colados
E do bolero bailado
De pés no chão

Não será igual
À sede da água 
Bebida de sua boca
Na varanda da manhã

Não será escura a gruta
Na garganta das veredas
Não haverá feridas abertas
E não serão mais vermelhos
Aqueles flamboyants

O cumprimento dos três pedidos
Na fonte dos seus desejos
Ficaram emaranhados
Nas linhas do nosso destino
E estas estão riscadas
na palma da minha mão


* Nova parceria musical com Lula Barbosa

Thursday, October 27, 2016

Abc aos pés da santa



(Para a Turquinha e pro Zezim de Dona Ercília, que estudaram em GV)

Fui alfabetizado por uma velhinha que, diziam as más línguas, teria sido prostituta na juventude.
Baixinha, magra - daquelas bem ossudas - e de bigode, não consigo imaginar que tenha sido profissional do sexo.
Não teria sido das moças mais atraentes, a nossa dona Nilda. Para piorar, tinha as pernas muito finas e peludas.
Como sei disto? Ora, ela me colocava para rezar, ajoelhado, diante da imagem de uma santa cujo nome me foge à lembrança. E eu via seus cambitos, quando ela se aproximava para anunciar o fim do castigo.

Não creio que seu método didático tenha funcionado comigo. Até hoje tenho dificuldade de me lembrar quanto é sete vezes seis, o calcanhar de Aquiles nas arguições de tabuada.
Por mérito dela e medo meu (de rezar ajoelhado de novo e de novo e de novo), eu entrei no grupo escolar sabendo ler e escrever.
A primeira professora "oficial" chamava-se Dionete e me dei bem com ela. Terminei o ano com honras e só não gostava da hora da merenda, no recreio. A fila quilométrica de caneca plástica na mão para encarar uma gororoba que chamavam de "triguilho", não deixava tempo para brincar com a meninada.

Nas festas do Manoel Byrro eu fazia dupla com um menino a quem chamávamos de Maurício Zói de Gato, porque ele tinha os olhos azuis.
Nós cantávamos Era Um Garoto Que Como Eu Amava os Beatles e os Rolling Stones, do grupo Os Incríveis.
Começava ali uma carreira promissora na música.

Nosso palco era uma mesa de fundo bambo, suspeitíssimo e, na hora do refrão, imitávamos uma metralhadora com as mãos, apontávamos um para o outro e gritávamos ra-ta-ta-ta-ta-tá.
Ao final da performance, caíamos para trás, como que atingidos por balas vietnamitas. Choviam aplausos, mas como nosso repertório se resumia a uma única música, a platéia enjoou e terminou ali aquela promissora carreira musical.
Adultos, Maurício entraria para a polícia militar e eu viria lavar pratos nos Estados Unidos.
Cantar, para ambos, nem no banheiro.
Quando completei oito anos minha família foi de mala e cuia para Barra do Cuieté, um lugarejo quase na divisa com o Espírito Santo e para onde meu pai havia sido transferido.
Vivemos lá durante um ano e meio e foi um perìodo muito feliz de minha vida. Nadava na foz do Rio Caratinga com o Rio Doce, tomava banho de cachoeira, pescava e caçava passarinho.
E foi lá, no Grupo Escolar Maria Ortiz, que iniciei a 'trajetória nas letras'.

Todos os anos acontecia uma concorrida gincana em que os alunos tinham que executar tarefas que dariam os pontos para a sua equipe. Os vencedores iriam em cima de um caminhão de leite a Conselheiro Pena  tomar sorvete e passear na pracinha.
Na tarefa de redação, cujo tema era "Meu brinquedo favorito", conquistei o ponto para a equipe azul ao enumerar os gols que faria (e não fiz) com a bola de futebol que minha tia Terezinha ainda haveria de me dar.
E aquele sorvete sentado num banquinha da Praça da Matriz em Conselheiro foi meu Jabuti, meu Nobel, meu Camões.
Meu prêmio era de creme.
E até hoje eu consigo sentir o seu gosto doce.

.

Tuesday, September 27, 2016

Aretha Franklyn e Deus



(Para Ciro e Marcie, sempre presentes)
Tomara que Ele não me castigue, generoso e bom como é. Mas gostaria de deixar registrado que Deus, em seus momentos de lazer, escuta Aretha Franklyn. 
Acontece naqueles instantes em que Ele não está sendo massacrado com as aprontações de seu inimigo; não está dolorido com nossas fraquezas; e desvia a atenção das traições mais absurdas.
Ele aperta o play e Aretha canta Do Right Woman, Do Right Man.
É quando brotam margaridas na face da terra e arrefecem-se os vulcões. 
São esses os momentos em que coisas boas acontecem para a humanidade. É quando proliferam milagres e os cientistas descobrem a cura para alguma doença. É quando assinam tratados de paz e nascem crianças perfeitas. 
Quando Deus escuta Share Your Love with Me, multiplicam-se os peixes e os pães. 
Eu sinto a presença de Deus quando Aretha Franklyn canta. 
Outro dia, vi um video em que ela interpretava uma canção de Carole King e era Deus quem fazia o duplo papel de ouvinte e de intérprete: na plateia, Ele se emocionava; no palco, tocava piano com um casaco de pele. 
Era Ele que transformava o mundo em um lugar melhor durante os 3 minutos e 48 segundos da música.
Ali, naquele momento, Ele se redimiu de seus falhanços e eu pude esquecer os refugiados sírios, espremidos em uma embarcação, arriscando a vida numa fuga do inferno pelas águas do Mediterrâneo.
Eram homens, mulheres e crianças, todos filhos d'Ele.
Pude desviar a atenção do rapaz descendo do carona da moto com uma arma na mão, durante um sinal vermelho.
Pude esquecer o desejo do homem-bomba de abrir os braços  (como um Cristo Redentor de Kandura) e apertar o detonador em plena Times Square iluminada de ganância e neón.
Esqueci por quase 4 mininutos a fome e a injusta distribuição.
Mas nem só de Aretha Franklyn vive o Todo Poderoso.
Quando Ele se cansa e cochila no serviço, acontecem tsunâmis, Fukushimas, golpes de Estado, negociatas de corrupção e gols-contra no futebol. 
Tenhamos compaixão.
Deus está cansado, não lhe damos sossego. 
Quando Ele chega ao limite do corpo é o momento em que a voz de Aretha se cala e os casais se desentendem, as nações declaram guerras, inventam bombas destruidoras e o pão de queijo carboniza no forno.
O leite derrama quando Ele se cala e Aretha Franklyn fica muda. 
Mas não é só com Aretha que Deus se emociona, pois sinto a sua presença em tantas outras coisas, que cabe aqui enumerar.
Quando o outono decreta o fim do verão e Deus pinta de ouro (e cobre e zinco) a paisagem do norte das Américas, Ele revela – em toda a glória e esplendor  - um momento de divina vaidade.
Eu escuto Deus no discurso do papa Francisco, o papa mais tolerante, mais gente-boa que a humanidade já conheceu.
Escuto Deus na chuva.
Escuto o Seu assovio quando o vento varre os telhados. 
É Ele que assopra a cabeleira dos canaviais e joga anilina no mar.
Ele pinta aquarelas coloridas com as quatro estações e está presente quando vejo um quadro de Portinari ou me lembro de um gol de Pelé.
Quando leio Manoel de Barros e sua simplicidade, eu o sinto.
E em Adélia se derretendo por Jonathan.
Ou quando Cora Coralina fala de biscoitos.
Registro sua presença na voz de meus pais, já velhinhos, ao telefone: sinto-o cristalino quando, na hora da despedida, os dois pedem que Ele me abençoe.
Mas é quando minhas filhas me chamam de pai, que eu escuto mais forte sua voz.
É este o momento da canção em que Aretha Franklyn, muito emocionada, atinge as notas mais altas e arrepia a pele de Deus.

Tuesday, September 20, 2016

Ensaio miúdo sobre a brancura da inveja


(Para as poetas Jô Diniz e Ana de Istambul)


Passo de carro e os vejo emparelhados. Existirá na vida aquilo que chamam de inveja branca?
Sim, existe.
E eu a conheço, tenha ela a cor que tiver.
Falo o seu idioma.
Domino seus desdo­bramentos.
Comungo da hóstia amarga dos invejosos, mas minha inveja não é daqueles que conseguiram mais e melhor.
Não invejo os campeões, os brilhantes, os ricaços, os bem nascidos e os bonitões.
Minha inveja é dele e dela, que vejo do outro lado do parabrisa .
Ele e ela, que caminham pelas ruas como que encantados por um violino imaginário.
Dele e dela, ela e ele, que poderiam ser outros quaisquer, que não estes.
E a minha inveja é de não sê-los e de não tê-los sido.
É inveja da inocência e da inconseqüência.
Do verdor, do frescor, da ausência de noção do perigo. Inveja da forma como eles amam.
O amor na juventude é o melhor amor que existe, posso assegurar.
Ele é chama que não se apaga e vive para sempre em quem o viveu, ainda que, agora, em fantasmagórica saudade.
Na outono da vida o amor parece não existir mais. Evapora, feito éter.
Mas eu falava dele e dela. E eles estão de mãos dadas numa avenida que conduz ao futuro que eles não sabem ainda ser incerto. Ele e ela de mãos dadas na praça.
Ele e ela num banquinho, as mãos entrelaçadas e o pedido feito ao meteorito que riscou o céu.
Ela lhe oferecendo a lua branca e cheia. Ele batizando uma estrela com o nome dela.
Toca uma balada romântica de Cazuza ao longe e aquela é a música que lhes embala a noite e tudo o que lhes foi prometido por Deus. Qualquer deus.
Na noite que cheira a jasmim e a grama verde, recende também a lavanda do pescoço dela e a água de colônia do queixo dele.
Beijos que se multiplicam como peixes, afagos que se perpetuam, pele que arrepia e o planeta ficou zonzo. A Terra parece ter parado de girar. E eles se amam como se não existisse o amanhã.
Para que nos servirá o amanhã? – pergunto eu.
Para que o amanhã, se a felicidade reside aqui, urgentíssima, agora, no carinho deles?
Vejo que ele apanha uma pedra no chão. Tem o formato de um coração, imagino. Diamante mais verdadeiro.
Ele dá pra ela a margarida que roubou do outro lado da grade E um anel de flandres, feito da tampa do copo de água mineral, que ela promete guardar pra sempre.
Em troca ela lhe oferece o ombro. Insinua o colo. E ele lhe garante ter dois bilhetes – de ida – para o paraíso.
Ele e ela sem medo de amar…
Ele e ela sem medo da felicidade, ou daquilo que algum adulto sem graça batizou de medo de ser feliz.
A graça de ser jovem existe, acima de tudo, porque os jovens não conhecem o medo. E há tempo de sobra para recomeçar do zero.
Eles desconhecem o desgaste, a rotina, os filhos e suas necessidades, o tempo que passa cruel e pontualmente e as pequenezas envolvendo dinheiro, pagamentos, prestações, ambições profissionais e a incorporação de bens.
Benditos sejam aqueles que conseguem, por um dia que seja, amar na idade madura com a graça, fúria e inocência dos jovens de ontem, de hoje e de sempre.
Benditos sejam eles. Benditos sejam...
Amém.

Friday, September 9, 2016

Rabisco indefinido para uma letra de canção

Vil perdão

(Para o Fred)


Eu perdoo você
e suas pequenas mentiras.
Suas grandes mentiras.
Suas mentiras
de todos os tamanhos.

Perdoo
as promessas de campanha,
as promissórias afetivas
seus ‘eujuros’ e 'euteamos'

Perdoo a nudez fingida,
os seios oferecidos
as geometrias felizes
os trejeitos de Marilyn
e os gozos de festim.

Perdoo suas nuvens vazias de chuvas
seus minuanos, seus tsunamis
Perdoo os raros dias de sol
e a ausência de verões

Eu perdoo

Perdoo os seus boleros,
suas rumbas, suas dores
e o aço frio dos  punhais
- o finco das bandarilhas -
ardidos, urdidos
em minhas costas
e esta sangria imposta
feita de uis e ais

Perdoo você como
quem perdoa Judas.
Perdoo, principalmente,
seus pra sempre
E seus jamais.

Sunday, September 4, 2016

Ofício


(um arremedo à moda do Manoel para o Bispo Filho)

Ele
passa dias a fio
cozinhando o frio
espalhando nuvens
derramando chuvas
acendendo as luas

Deus
passa domingos inteiros
pintando lírios
e afinando o zumbido
dos marimbondos

Tuesday, August 30, 2016

A dançarina



Ela dança quase parada
olhando a névoa que devora a pedra
e baila a bordo da casa que flutua
como um barco cigano

Dança com os olhos molhados
a cada aceno de despedida
a cada fantasma do passado
e a cada nova ferida

Dança a noite mal dormida
nas retinas fatigadas
na alma estilhaçada
na carne toda doída

Dança o sorriso de plástico
a flor murchando no peito
dança em nome do pai
do filho e do espírito santo

Dança de mal com Deus
dança de bem com o homem
dança com os pecados seus
mesmo os que não cometeu 

Dança com um par invisível
rodopia com a dor indizível
dança com os dois pés amarrados
e seus sapatos de cinderela

A moça dança sozinha
e no rodar de sua saia
rodopiam dores
maremotos, furacões

Dança um tango sem alma
dança para encontrar a calma
dança para esquecer
a solidão que escolheu como par

A moça dança, dança, dança...
ela não consegue parar de dançar
a moça dança, dança, dança...
ela não para de rodopiar.

A moça dança, dança, dança...


(30 de Agosto de 2016) 


* Poema de Caixa de Suspiros, primeiro livro de poemas do autor desde 1988. Lançamento previsto para abril de 2017.

Thursday, June 9, 2016

Dona Glória


Não vi que ela chegara de surpresa, momentos antes de eu emitir aquele sonoro palavrão. Coisa corriqueira, uma dessas bobagens de trabalho, em que a pressão do “dead line” acaba levando a melhor sobre o bom senso e a razão.
O telefone tocava insistentemente e ninguém atendia. E eu, que dava os retoques finais num texto qualquer, fui perdendo gradativamente a concentração. Audivelmente irritado, gritei de minha sala:
– Atende essa porra aí….
Segundos depois, quando saio da sala para buscar um café, a cara quase caiu no chão.
Dona Glória estava lá, quietinha, sentada numa posição característica de “vó” (as pernas cruzadas, uma mão sobre o joelho e a outra mpostada em cima), com cara de quem estava fazendo de conta que não havia testemunhado tamanha grosseria.
Bem feito, terão pensado meus colegas de trabalho.
Bem feito!
Fiquei desconcertado. Extremamente desconcertado.
Mas fui lá e fizemos as apresentações formais.
Dei-lhe um abraço, ganhei outro. Bem mais fundo. Um abraço maior.
No abraço de avó Glória veio o abraço de todas as avós do mundo e uma esperança de que meu dia iria mudar. Que minha vida iria mudar.
E eu, aquele sujeito estressado que acabara de cometer uma enorme grosseria, senti-me perdoado ao ser abraçado por ela.
Senti na hora que não iria para o paredão.
Que não iria para o pelourinho.
E não haveria cadeira elétrica, prestação de serviço comunitário ou outro degredo qualquer.
O destempero havia sido compreendido, embora tudo ali tivesse sido devidamente registrado na caderneta de más-ações para o dia do Juízo.
Não cheguei a pedir desculpas, creio eu. Bad boy.
O nosso abraço, que durou alguns segundos e pareceu eternizar-se como uma destas coisas boas da vida, transpôs-me a um lugar bonito, muito distante dali.
No abraço de vó Glória veio uma sopa de legumes em um dia de gripe e febre. E uma bandeja de quindins, brigadeiros e biscoitos de polvilho.
Veio um embrulho colorido com o meu nome escrito, sob uma árvore de natal.
Veio um dia ensolarado.
Veio o som de um radio ao longe, na hora do Angelus, tocando a Ave-Maria.
Veio a lembrança de um bichinho de estimação que bem poderia ser um coelho branquinho, de olhos encarnados, um gato rajado ou um cãozinho vira-latas, daqueles que nos seguem o tempo inteiro e se deitam ao pé da cama.
Veio a algazarra de crianças na hora do recreio e o canto de uma cigarra.
Veio um carrinho de rolimã desembestado - descendo a rua -, um embornal de bolinhas de gude, um pião e um ioiô.
Veio um pé de fruta, carregado de pitangas vermelhas, cajus amarelos, laranjas douradas; carambolas. Jambos. Graviolas. Pequis. Mangas e cajás.
No abraço dela veio um ‘corguinho’ cheio de lambaris e carás, mandis, traíras, cascudos e piaus.
Veio uma árvore apinhada de passarinhos, canários-do-reino, tizius, sanhaços e bentevis.
Veio o telhado de uma igreja coalhado de andorinhas. E um solo de curió.
No abraço de vó Glória veio a primeira comunhão e a roupa nova, a camisa de tergal ainda com cheiro de loja, a calça-curta, o sapato “colegial” e a meia branca até o meio da canela.
Veio também o primeiro dia na escola. E um sorriso orgulhoso no dia da entrega do diploma do primário.
No abraço de vó Glória veio também a esperança de que eu viesse a ser, no momento certo, e apesar de todas as carências e deficiências, um adulto bom.
Um homem que soubesse pedir desculpas. Que soubesse pedir perdão.
E é o que tento fazer até aqui.
É a minha intenção, apesar de todo o atraso, nesta crônica-pedido-de-desculpas.
Mau menino, eu sei. Muito mau.
Vó Glória aí, desculpa. Foi mal.

.

Tuesday, March 8, 2016

Convite para inauguração


Fábio Portugal me fez uma bela gracinha. Ele convidou-me para a inauguração de seu bar. Não, Fábio Portugal não está abrindo um bar, um estabelecimento comercial, daqueles convencionais, imóvel de esquina, com letreiro luminoso da Budwiser na janela, poster de cigarros Hollywood na parede e uma juke box num canto, onde pode-se ouvir de Frank Sinatra a Reginaldo Rossi.
Ele construiu um barzinho no porão de sua casa e o trem ficou danado de bonito. Particularmente, eu não gostaria de ter um barzinho em casa. Talvez, por saber do perigo iminente de ter, tão pertinho de mim, um convite às tentações e o perigo da cirrose. Ou pelo medo de não encontrar companhia.
Mas não sou contra quem não bebe. São idiossincrasias, diria o poeta.
Eu comecei novinho, bebendo escondido a prosaica cuba-libre (aquilo que aqui nos EUA chamam de rum and coke e que nada mais é do que isto mesmo, rum misturado com coca-cola). Era uma espécie de reverência a Cuba e à revolução cubana.
Aquela geração inteira de filhos da ditadura militar no Brasil bebeu cuba-livre fervorosamente, sem imaginar que, um dia, Fidel Castro se tornaria tão tirano quanto Pinochet ou Geisel.
Beber é muito bom, eu acho.
E compartilho daquela máxima de que mais vale um bêbado conhecido, do que um alcóolico anônimo.
Pode ser  na degustação de uma cachacinha, um rabo-de galo, um uisquinho ou mesmo uma cervejota gelada. Mas há quem goste dela quente.
Há também quem goste de tomar champanhe.
Tenho uma amiga que só bebe da caríssima marca Crystal e, na minha cabeça pequena, para o cidadão tomar um porre de Crystal, ele tem que hipotecar um imóvel ou vender um rim antes de sair de casa.
Mas ela fala de uma forma tão convincente sobre o prazer da "coceguinha" gostosa das borbulhas efervescendo nos lábios, que dá vontade de, realmente, hipotecar o patrimônio e encarar uma Crystal bem de frente.
Não que eu entenda dessa modalidade, posto que, champanhe, bebi poucas na vida. Eu sempre achei que champanhe era aquela cidra Cereser que serviam nas festas de juventude lá em São Raimundo. Não era. Não é. Mesmo porque, champanhe de verdade nunca frequentou botequim.
Para acompanhar a prosa do habitat dos boêmios, Deus inventou os tira-gostos.
Aliás, não deveria ter esse nome.
Deveria chamar-se "realça-gosto", "complemento", aquelas moelas com molho de tomates (boas para comer com pão murcho, dormido), o torresminho crocante, a dobradinha gelatinosa, a rústica carne de sol com mandioca, o lambari trincando de frito e o sagrado fígado acebolado com lâminas de jiló grelhados na chapa.
Chego junto quando o combustível da prosa é uma bebidinha. Mas não consigo beber sozinho. Acho absolutamente inverossível beber só. O cara que bebe sozinho, é como se dançasse consigo mesmo.  Não vejo graça.
Não que eu me orgulhe, mas ganhei, ao longo dos anos, a reputação de bom de copo. Gostaria de ter sido bom de matemática. Bom de bola. Bom de muitas outras coisas, mas restou-me o Nadir Figueiredo, que lá em Minas chamam de lagoínha.
E o presente que mais recebo é bebida. Tenho mais de 80 garrafas de cachaça - todas recebidas de presente de amigos e leitores - que vão desde a raríssima Havana (auspiciada pelo compositor Celso Adolfo), às menos cotadas Amansa Corno, Sossega Leão, Arriba Saia e Providência. Tem gente campeoníssima em tomar "providências" no botequim.
O bom de biritar é que a birita desenbola a prosa. Ela afrouxa a língua e libera os pensamentos mais reprimidos.
Tem cara que, quando bebe, torna-se uma grande autoridade em qualquer tema. Vira especialista dos mistérios do universo e opina sobre propulsão de foguetes, a existência de marcianos e a reprodução de protozoários in-vitro.
A sagrada 'bitruca' aguça a discusssão sobre política, futebol ou mulher. Por mais santo que seja o caboclo, ele acaba entrando na eleição das melhores pernas da tv Globo, ou dando um pitaco sobre a boca insinuante de Angelina Jolie.
Dependendo do número de cervejas, Maradona foi melhor que Pelé, o fusca é que é o carro e a camisa do São Paulo é a mais bonita do Brasil.
Só não pode dizer que Fernando Collor foi um bom presidente, ou confessar que votou em Dilma para presidente. Pelo menos na minha roda, o caboclo é expulso sem direito à saideira.
E ainda ganha a fama de bebum chato.

Thursday, January 7, 2016

Topázio, 149


Aquele menino tinha tesouros que valiam mais que ouro.
Mais que prata e do que queijo e requeijão.
Ele tinha um embornal com bolinhas de gude, um pião de madeira e um álbum de figurinhas do Grande Circo Mexicano.
Tinha cadernos da escola, um livro de tabuada e uma caixa de lápis de cor.
Ele tinha um cãozinho que fazia companhia e lhe lambia as mãos. E tinha uma andorinha fazendo ninho na cumeeira da varanda, um canarinho cantando ao longe e um girassol que sorria.
Ele tinha um coreto de igreja e uma igreja com torre e sino. E tinha um pátio embandeirado e uma fogueira de São João.
Tinha dez padre-nossos e quinze ave-marias. Tinha um catecismo. Um terço e um sermão do padre João.
Levava um santinho no bolso da camisa e um anjo da guarda, no coração.
Tinha uma solidão domingueira e uma febre de gripe.
Tinha um rosário de lombrigas e um medo de morrer.
Tinha cachumba, catapora e uma tatuagem no braço, como prova da vacinação.
Tinha um redemunho que levantava a poeira da rua e onde vivia o cramunhão.
Tinha também um oratório, a morada de Deus.
E tinha Deus.
Aquele menino tinha um terreiro, que era um latifúndio do tamanho do Texas.
E um varal pendurando as roupas que à noite se transformavam em fantasmas e lhe afugentavam o sono, trazendo as pisadeiras.
O menino tinha um vento com voz de Caruso que varria seus telhados.
E uma chuva nervosa fazendo algazarra no milharal.
Ele tinha uma janela pro rio. Tinha um rio. Um relâmpago e um trovão.
Tinha um amigo imaginário e um outro, filho da vizinha.
Tinha calções sujos de terra e um exército de formigas.
Um rebanho de boizinhos de melão de São Caetano e um canavial de capim.
Tinha vulcões de formigueiro, pequenos vesúvios que jamais entraram em erupção.
E ossos de galinha enterrados na terra, material de arqueologia vã.
Aquele menino tinha dinossauros fantasiados de lagartixas e calangos que sabiam dizer sim.
E outras criaturas pré-históricas, como o louva-a-Deus que molhava a bunda na água, besouros encouraçados e verdes esperanças.
Aquele menino tinha uma orquestra de cigarras à hora da Ave-Maria.
E tinha Maria, uma irmã.
No quintal daquela casa ele escreveu seus primeiros evangelhos, pensou nano-pecados, cometeu insignificantes heresias.
Foi lá, no número 149 da Rua Topázio, que ele enterrou a infância, alguns sonhos de algibeira e todas as certezas.
Ele tinha um quintal e o quintal é o lugar onde todo menino jaz
O quintal da casa, meus amigos, é o cemitério da inocência.



.