Tuesday, April 30, 2013

Uma nova possibilidade


Vamos falar do mel e das coisas boas.
Vamos falar de mais encontros e menos despedidas.
Mais delírios e menos porradas.
Vamos falar do mel das palavras bonitas e benfazejas, e esquecer o fel daquelas que envenenam e coalham o nosso sangue.
Vamos tecer alegrias e despedaçar mágoas, já que a hora é agora.
Atentem: mágoas passadas não movem moinhos.
Precisamos jogar no ralo da vida essas amarguras e tristezas que às vezes nos fazem sentir como se tivéssemos pregado Cristo à cruz.
Esse calvário não é nosso, saiba você.
Essa conta já foi quitada há mais de 2 mil anos.
Por que permitir, então, que os erros e mazelas do passado nos aterrem?
Por que viver com um pé no presente e o outro no anteontem?
O passado é uma roupa que já não nos serve e as traças do tempo puíram o vestido dela, e as costuras do terno dele não resistiram.
Por que mastigar o vidro moído do ressentimento, se sabemos que certas reminiscências magoam?
Aprendamos com os erros.
Os nossos e os dos outros.
Reconheçamos a proximidade do perigo, todas as vezes que a vida o colocar travestido de tentação à nossa frente.
Precisamos nos desviar dele, sem sequer olhá-lo nos olhos.
Saibamos ignorá-lo, simplificando o ofício de viver.
E saibamos, ainda, cortar laços nocivos e recomeçar. Do zero, se preciso.
Toda manhã é um convite ao recomeço e cada nascer do sol traz consigo uma nova possibilidade.
O passado nos persegue, eu sei.
Portanto, Estejamos atentos.
Aprumemo-nos. Acertemos os passos.
Desviemo-nos do que ficou para trás.
E esse fantasma que insiste em voltar nos sonhos, quando dormimos, transformando nossas noites em pesadelos, aprendamos a assustá-lo.
Expulsemos esse verdugo para longe de nós.
Sonhemos!
Sonhemos dias sem tempestade, de céu claro e sol brilhante.
Dias que começam com a grama orvalhada e se encerram com uma lua cheia.
Dias de música bonita tocando no radio e de notícias boas. De abraços sinceros e do calor das verdadeiras amizades.
Dia de visita de irmão. Dia de colo de mãe.
Dias de sessão de cinema, de pipoca, de chope com os amigos e conversa leve no bar.
Dia de sonhar acordado com um amanhã melhor que o hoje.
Esse hoje, que já foi muito bom. Mas que já foi.
Vamos sonhar um futuro...
De quintais embandeirados.
De poemas e canções.
Sonhemos o companheirismo e a amizade.
Sonhemos mangueiras em flor.
Sonhemos...
Sonhemos a cumplicidade das coisas boas, a gargalhada solta, o afago gratuito e o olhar sincero.
Sonhemos aquela reparadora viagem a qualquer lugar.
Tomemos coragem para fazer as malas.
E embarquemos no primeiro navio, no primeiro trem...
Deixemos que o vento nos afague o rosto e nos percamos no azul de algum mar.
É muito provável que nesse se perder resida o se encontrar.


 

Monday, April 22, 2013

Uma Crônica de Meninos de São Raimundo






 O verdadeiro peso da Terra


(Para Líria Porto)


E se tudo o que disseram tiver sido mentira? E se não
houver, finalmente, vida após a morte? Já imaginaram?
De um instante para o outro a chama da vida se extingue e, como uma vela apagada, deixaremos de iluminar a escuridão à nossa volta.
Assim, de repente, não mais que de repente e, como que reagindo ao movimento do dedo no interruptor, ou no botão onde Deus escreveu, em inglês, a palavra “off ” chegamos ao fim.
Cessa o movimento do corpo, a memória se apaga e a estrada da vida chega ao seu final.
Acabou.
The End.
Fim.
Não há mais acerto de contas, nem purgatório, nem dono do inferno ou senhor do céu.
Não haverá São Pedro, nem Satanás para dar as boas-vindas à porta da próxima parada.
Nem céu, nem inferno, apenas o buraco negro do nada e a matéria se desintegrando, gradualmente, pasto de vermes.
Este é o ponto final. Todo mundo desce aqui.
A partir daqui, só o silêncio, a escuridão, a inércia, nada mais.
Já imaginaram?
Eu, que imaginei e fiz as contas, considero-me no lucro.
Se não houver nada além, já terá valido a pena.
E valeu, porque andei de pés descalços sobre a grama
orvalhada, mergulhei no doce das águas de um rio e no sal das ondas do mar.
Vi o sol nascer e se pôr, conheci o amor, gerei crianças perfeitas, lindas.
Fui abraçado por mornas manhãs, fiz serenatas em noites de lua cheia, recebi o afago do vento e tomei banhos de chuva.
Li livros bons e ruins, conheci pessoas interessantes, gritei “gol”.
Chorei de alegria e de dor. Gargalhei, sorri.
Bebi a poesia de Neruda, Drummond e Lorca. Sonhei mudar o mundo e acordei, pacificado e nu, diante de um imenso deserto.
Não conheci a fome ou equivalente flagelo. Sempre existiu um cobertor para me proteger do frio e um teto como abrigo às tempestades.
Decifrei - menino ainda - o significado da palavra lar.
Fiz amigos, muitos.
E inimigos que não enchem uma mão.
Comi pão com mortadela de padaria, colhi fruta madura no pé, senti o perfume de um jasmineiro em noite de estrelas.
Nunca roubei, matei ou envergonhei quem me trouxe ao mundo.
Fui abençoado por ter vindo de onde e de quem vim.
Ao longo dos anos tentei vencer a inveja e a mesquinhez. Não sei se consegui.
Mas meus pecados podem ser considerados menores, e os medos nunca me assustaram além da conta.
Saí de minha aldeia, corri trecho, visitei mundos - que imaginava longínquos demais - paisagens iradas de páginas impossíveis.
Fui e voltei.
Aprendi a me arrepender dos erros e a pedir perdão, uma das tarefas mais difíceis para o ser humano.
Obra em andamento, eu sei que ainda tenho muito o que melhorar. Mas não perdi a esperança.
Se tudo o que disseram durante toda a vida tiver sido mentira, não terei mais perguntas a fazer.
Nem queixumes.
E me darei por satisfeito se tiver conseguido melhorar o produto final, quando tiver chegado àquela hora de ir daqui para lugar nenhum.
Reduzido a simples matéria, sei que a terra me será leve, muito leve.



Ilustração:
Atlas, de Lee Lawrie and Rene Chambellan; e que pode ser visto no Rockefeller Center , em Nova York.

Wednesday, April 17, 2013

Um dia que arde


 

O colchão ardia em chamas. O teto do quarto era a boca de um vulcão.

Ardia a carne e a consciência, como se alguém tivesse jogado um punhado de sal em minhas feridas mais profundas.

Ou pólvora, já não me lembro bem.

As coisas nem sempre correm como queremos, eu sei.

E, na contramão de um desejo inocente - que deveria ser o prêmio de todo trabalhador após um dia de labuta, o descanso -, passei a noite inteira de mãos dadas com a insônia.

Lá pelas quatro da manhã, eu tomei coragem, desci as escadas e comecei a trabalhar.

Meu expediente, nesta terça-feira, teve início às 4:30 da manhã e seria natural que eu adiantasse meus textos e que me colocasse numa posição de vantagem quando a cidade acordasse e o batente no jornal tivesse o seu início.

Os dedos furiosos correram pela extensão do teclado, é verdade, mas não chegaram a lugar algum.

Eu estava visivelmente fora do meu elemento.

Eu não me achava, apesar de voluntarioso.

E, apesar de querer andar para a frente, uma força maior me atava ao chão.

Eu apenas me arrastava.

Esta era para ser uma terça-feira gloriosa, pela qual há muito eu esperava.

Afinal, seria hoje que a Gangue dos Oito anunciaria o projeto de lei da Reforma Migratória que libertaria 11 milhões de trabalhadores, devolvendo-lhes a dignidade, o direito sagrado de ir e vir.

Pensei em milhões de pessoas que poderiam, finalmente, rever os seus respectivos países de origem.

Pessoas que tiveram na distância uma armadilha perigosa, que destruiu seus casamentos e arruinou seus amores.

Pessoas que não viram os filhos crescerem.

Que não os viram marcar um gol no campeonato da escola ou deu-lhes uma abraço na festa de formatura.

Pessoas que perderam cerimônias de casamento de irmãos, irmãs, filhos e amigos de infância.

E que perderam a festa de debutante da própria filha.

Pessoas que não puderam estar presentes a aniversários e batizados de entes queridos.

Pessoas que perderam entes queridos.

Pessoas que encontrarão buracos na alma, quando retornarem a seus lugares de nascimento.

Mas que estarão felizes, de alguma forma, sentindo-se aliviados e com a certeza do dever cumprido.

Ao invés de celebrar com estes e com aqueles, ir às ruas numa grande celebração, recolho-me ao luto.

As imagens da televisão não deixam dúvida: o demônio anda à solta e existem homens ensandecidos e dispostos a infligir indescritível dor em inocentes.

A cartolina na foto do jornal em que o menino Martin Richard - uma das 3 vítimas fatais da barbárie da maratona de Boston - pede ao mundo que não machuque mais as pessoas, passa a ser um documento que atesta o fracasso da raça humana.

Esta cartolina será, para sempre, um quadro dolorido pendurado na parede de nossas consciências.

Onde alguns conseguem ler a palavra paz, outros leem barbárie.

E qualquer dia destes terá sido tarde demais.

 

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Monday, April 15, 2013

Tempo, o senhor de tudo


Para Ciro e Marcie


O tempo, às vezes, é um objeto. Ainda ontem escutei alguém afirmar tê-lo perdido. E comigo! Eu não o tenho em minha posse (juro!).
Eu, que já perdi a carteira, o telefone celular, as chaves de casa e do carro, e até algumas oportunidades na vida, fiquei matutando se já perdi o meu tempo. Pensando nestes termos, é uma obviedade afirmar que tanto se perde quanto se ganha tempo. Já me peguei adiantando umas coisas para ganhar tempo. É regra geral.
Quem mata o tempo não é um assassino e, sim, um suicida.
Afinal, o tempo é imortal. Desde o início dos tempos.
Ponho-me a divagar sobre o tema, mesmo sabendo que isto será pura perda do próprio.
O tempo é cruel.
Erode. Enruga. Estraga. Desbota.
Apenas algumas coisas ficam melhores com sua passagem.
Dizem que o vinho é uma delas. Certas pessoas, também.
O tempo é matéria: é duro, de ferro...
É volátil e evapora feito éter. Tudo depende de sua vontade.
É um atleta e corre como ninguém. Mas às vezes demonstra vocação para lesma – e passa bem devagar.
Ele é inesquecível. Deixa sempre sua marca. Basta um olhar no espelho para encarar essa triste realidade.
Nascemos condenados a sua ditadura, concluo. Mas ele também é democrático, pois passa para todo mundo.
É um estilista. Dita a moda. Nunca é omisso, está sempre presente. Ele é sina, comprida ou curta.
Tive um irmão que morreu aos três anos de idade. E uma irmã que partiu logo ao nascer. Não tiveram tempo sequer de olhar no relógio.
Tempos modernos. Tempos passados.
Tempo, tempo, tempo...
Bons tempos. Velhos tempos. Tempos de guerra e paz.
Inventor da saudade e da nostalgia.
Latifundiário, criador de vacas magras.
E também de vacas gordas.
Vale perguntar: onde foram parar os bois do tempo?
Ou serão eles os Bois-tempo de Drummond?
Trabalha com agricultura. É de semear e colher.
É capitalista. É dinheiro.
Algumas pessoas o possuem de sobra. Outras não o têm para nada.
Às vezes ele nos cobra na mesma moeda. E não temos outra opção senão dar tempo ao tempo.
De vez em quando, o temos a nosso favor. Mas, quase sempre, ele joga contra.
Vivemos correndo contra ele, quando na verdade é ele que corre contra nós. Sobre todos e sobre tudo. Ele nos atropela como um rolo compressor. Mas consegue ser sábio e justo.
É como um juiz que não erra em seus vereditos. Diz quem está certo ou errado. Ou será que vocês nunca escutaram o refrão: “o tempo dirá quem tem razão”?
E esta é uma grande responsabilidade da qual o tempo não se esquiva. Ele faz chuva e faz sol. É de boa e, ao mesmo tempo, má índole. Escutei no rádio, por exemplo, que amanhã vai fazer tempo bom. Mas que depois de amanhã fará mal tempo.
Este senhor de mil faces é, de fato, inquieto.
Ele não para. É um automóvel sem freios.
Não, não para.
O tempo é tic, tac – e o que o fica entre o tic e o tac.
É um tipo raro de pássaro sem asas. Mas voa.
É uma espécie de guru que desperta em nós a generosidade: devotamos tempo aos outros e ficamos sem tê-lo para nós mesmos.
É onipresente. Está em todo lugar.
Ou melhor, passa por todo lugar.
Passa sempre.
O que às vezes me faz pensar que o tempo é Deus.



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Tuesday, April 9, 2013

Ele Não Era Sinatra


Peter Pantoliano, meu amigo querido, telefona do carro.
Ele está escutando um programa no rádio em que os ouvintes ligam dizendo o nome de alguma personalidade que eles gostariam de ter sido numa vida passada.
Em alguns casos, dependendo da idade do ouvinte, a ele é facultado o direito de trocar de identidade com alguém ainda vivo, ou um defunto relativamente fresco.
Incentivado pelo amigo, sintonizo a rádio e uma mulher de voz cansada relata sua vontade de ser Ava Gardner. Uma outra quer ser Marylyn Monroe.
“As louras se divertem muito mais”, diz repetindo o manjado bordão.
 Devem ter sido contemporâneas dos mitos, intuo.
Falam de uma época de ouro numa Hollywood mais escrupulosa e ingênua do que esta de hoje. Mas esta Hollywood de agora também tem seus simpatizantes.
Um rapaz queria ser Brad Pitt, outro se insinua Tom Cruise. Este, enumera Penélope Cruz, Nicole Kidman e outras beldades que passaram pela por sua suposta cama.
Um homem de voz grave fala em Miles Davis, mas prefere ser John Coltrane. Ele é amante de jazz.
Redescubro no programa o quanto o norte-americano é patriota. Uns três John Kennedys ligaram para a emissora E pelo menos cinco Abraham Lincolns.
Um sujeito queria ser Bill Clinton e não demorou a aparecer uma Hillary, mulher carismática e forte. Para a felicidade desta, nenhuma Monica Lewinsky deu o ar de sua graça.
George Bush também não deu as caras. Ainda bem.
Entre os esportistas, vieram quatro Michael Jordans, dois Lebron James e nenhum Derek Jeter. O basquete continua em alta.
Um menino que se auto-intitula “O Super Hacker” não telefonou, mas mandou um e-mail. Acha que seria um excelente Bill Gates. Ou um esforçado Steve Jobs.
Outro ouvinte, com a voz embargada de quem está para lá de Marrakesh, diz que é um clone perfeito de Ozzie Osbourne. Mas seria mais feliz e mais bonito se fosse o Robert Plant, do Led Zepelim.
Com bossa e gingado na voz, essa mulher presumivelmente negra, fala das benesses de viver sob a pele de ébano de Oprah Winfrey.
“Poderosa, poderosa, poderosa e poderosa. E podre de rica”, disse, soltando em seguida uma sonora gargalhada.
“Eu seria a dona desta rádio. E você estaria desempregado”, ameaçou.
Um maluco liga dizendo que é a reencarnação Jesus Cristo.
Ele liga logo depois deBono Vox, do U2. E este pediu paz na terra aos homens de boa vontade.
No meio disto tudo reconheço uma voz que me é familiar.
É Peter Pantoliano, meu amigo querido, que quer ser Frank Sinatra. E ele explica o porquê.
“Talentoso, rico, famoso, influente, bonito, popular entre o mulherio e ítalo-americano, como eu”.
Ganhou um elogio do apresentador, que tocou Strangers in The Night, logo a seguir.
Durante alguns segundos, fiquei feliz por ter Frank Sinatra como "amigo" do peito.
Animado, quase entrei na brincadeira. Mas parei na ameaça de que nem todo mundo entenderia minha escolha.
Estamos vivendo uma era em que Tupak Shakur ainda é herói, quase um mártir. E que Paris Hilton é ícone. E Kim Kardashian possui uma legião de fãs.
Após a minha participação, certamente ficaria aquele silêncio constrangedor. Esse era o meu medo.
“Cidadão do mundo, gênio, maestro, poeta da canção, PHD em trinado de passarinho, bacharel em samambaias, doutor em chope e feijoada, brasileiríssimo, o seu coração”.
Como uma espinha de peixe engasgada na garganta dos ouvintes, aquele meu Tom Jobim sucumbiria.
Fiquei na minha. Troquei de estação.
À noite, encontrei-me com Peter Pantoliano para o chope sagrado de cada dia, no mesmo lugar de sempre, na Ferry Street.
Tão logo entrei no bar, observei que nem ele tinha os olhos azuis de Frank Sinatra e nem eu os cabelos compridos e bem cuidados de Tom Jobim.
Ficamos conversando durante umas três horas, bebemos um rio de destilados e em nenhum momento sequer, o programa de rádio daquela tarde foi tema de nossa prosa.
Rimos, bebemos, gracejamos, celebramos nossa amizade do jeito que sempre foi.
Três horas depois, saí dali assoviando Garota de Ipanema.
E aquela canção não era minha.
Nem a letra era de Vinícius de Moraes.


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