Thursday, February 28, 2013

Grandes Parcerias (IV)


Caetano Veloso e Ney Costa Santos traduziram e adaptaram este poema magistral de Mayakovsky para a MPB.
Eu era molecote, e não sabia quem era Mayakovsky. Aliás, mal sabia quem era Caetano.
Mas esta canção - que tocava no rádio... e, naqueles idos, o rádio tocava música boa - me comovia de tal maneira, que sempre que eu a ouvia, discordava do tamanho da "mãe" que o poema sugeria.
"Se o pai é apenas o universo, é muito provável que a mãe seja Deus", raciocinava.
Pensei em postar a versão gravada de Renato Braz, que adoro.
Só que a versão original falou mais alto.
Gritou.


O Amor
(Caetano Veloso e Ney Costa Santos, adaptado do poema de Vladimir Mayakovsky)


Talvez
Quem sabe
Um dia
Por uma alameda
Do zoológico
Ela também chegará

Ela que também
Amava os animais
Entrará sorridente
Assim como está
Na foto sobre a mesa
Ela é tão bonita
Que na certa
Eles a ressuscitarão

O século trinta vencerá
O coração destroçado já
Pelas mesquinharias
Agora vamos alcançar
Tudo o que não
Podemos amar na vida
Com o estrelar
Das noites inumeráveis

Ressuscita-me
Ainda
Que mais não seja
Porque sou poeta
E ansiava o futuro

Ressuscita-me
Lutando
Contra as misérias
Do cotidiano

Ressuscita-me por isso
Ressuscita-me
Quero acabar de viver
O que me cabe
Minha vida
Para que não mais
Existam amores servis

Ressuscita-me
Para que ninguém mais
Tenha de sacrificar-se
Por uma casa
Um buraco

Ressuscita-me
Para que a partir de hoje
A partir de hoje
A família se transforme
E o pai
Seja pelo menos
O Universo
E a mãe
Seja no mínimo
A Terra
A Terra
A Terra


Wednesday, February 27, 2013

Grandes Parcerias (III)

 
 
Um dos discos que mais me marcaram em toda a vida foi A Música em Pessoa.
Álbum lançado originalmente em 1985, quando a morte de Fernando Pessoa completava 50 anos.
"A Música em Pessoa" traz alguns de seus mais belos poemas, musicados com belos arranjos que engrandecem as composições, com interpretações de Tom Jobim, Jô Soares, Dori Caymmi,
Marco Nanini, entre outros. Uma obra clássica.
Esta regravação de Renato Braz é tão linda quanto a orginal, que teve a na beleza da voz de Nana Caymmi, a tela perfeita para os versos de Ricardo Reis, um dos heteronômios de Pessoa.

 
 


Segue o teu destino
(Poema de Ricardo Reis - Melodia de Sueli Costa)

Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses

Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
A resposta está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam


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Monday, February 25, 2013

Grandes Parcerias (II)


No post anterior, o poeta Assis Freitas comentou a parceria Raimundo Fagner/ Patativa do Assaré mas, ambos esquecemos da maior parceira (?) de Fagner, Cecília Meirelles.
Fagner musicou canteiros e Motivo, ambos lindíssimos e é bem provavel que nosso inconsciente nos tenha negado a lembrança devido ao imbroglio judicial envolvendo o espólio da poeta e o compositor.
Dando continuidade à série, resgato outro poema que ficou lindo demais, vestido de música.
Este aqui, de Drummond:


Eu preparo uma canção
em que minha mãe se reconheça,
todas as mães se reconheçam,
e que fale como dois olhos.

Caminho por uma rua
que passa em muitos países.
Se não se vêem, eu vejo
e saúdo velhos amigos.

Eu distribuo um segredo
como quem anda ou sorri.
No jeito mais natural
dois carinhos se procuram.

Minha vida, nossas vidas
formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
e tornei outras mais belas.

Eu preparo uma canção
que faça acordar os homens
e adormecer as crianças.
 
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Sunday, February 24, 2013

Grandes parcerias

 
Quase sempre, um grande poema não dá uma grande canção.
No Brasil, Raimundo Fagner foi um dos artistas mais bem sucedidos nesta empreitada.
Fez coisas lindíssimas com Florbela Espanca (Fanatismo, Perdidamente e Impossível), Fernando Pessoa (Qualquer Música) Nélida Piñon (A Doce Canção de Caetana), Affonso Romano de Sant'Anna (Os amantes) e outros autores, como os espanhóis Antonio Machado e Rafael Alberti.
Com o maranhense Ferreira Gullar ele fez a maravilhosa Traduzir-se  e esta aqui, Cantiga Para Não Morrer, primorosíssima:
 
 


Me Leve
(Cantiga Para Não Morrer)


Quando Você for-se embora
Moça branca como a neve
Me leve, me leve

Se acaso você não possa
Me carregar pela mão
Menina branca de neve
Me leve no coração

Se no coração não possa
por acaso me levar
Moça de sonho e de neve
Me leve no seu lembrar

E se aí também não possa
Por tanta coisa que leve
Já viva em seu pensamento
Moça branca como a neve
Me leve no esquecimento


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Saturday, February 16, 2013

As férias brasileiras de Paul McIntire

Paul McIntire é um americano de quatro costados, tataraneto de irlandeses, daquele tipo que sai vestido de druída na parada do Dia de São Patrício e é fanático por esportes.
Como a maior parte dos americanos, satisfaz-se por aqui mesmo.
Para ele, o Havaí é o que há de melhor.
Já esteve lá quatro vezes.
Conhece as ladeiras de San Francisco como a palma de suas mãos e seus olhos já foram tocados pela beleza das cataratas de Niagara e do Grand Canyon.
Boston é um banho de cultura toda vez que passa por lá e, aventura de verdade, só aquela dos cassinos de Las Vegas, onde vangloria-se de ter já tirado quase 30 mil dólares de uma máquina caça-níquel.
Os desertos do Arizona não são um mistério para ele, afinal fez o trajeto da Rota 66 em mais de uma ocasião. "Coisa mais linda!", ele diz.
Mas ele andava cabisbaixo ultimamente.
Ficou assim desde o seu divórcio com Diana, uma ruiva que conheceu no primeiro dia de aula do ginásio, e com quem viria a se casar, tão logo tirou o canudo de técnico em computação e arrumou o primeiro emprego.
O divórcio depois de apenas 3 anos de casamento e nenhum filho foi uma pauleira.
Sem destino ao final das jornadas de trabalho, conseguiu abrigo num Go-Go Bar de Newark.
Foi lá que ele conheceu - entre rodadas de uísque e cerveja -, as inigualáveis meninas do Brasil.
E o mito americano começava a desabar.
No início, relutou um pouco.
Recusava-se a comparar as ondas de Honolulu com as da praia da Joaquina.
Foi nos braços de uma loirinha de Maringá, que passou a acreditar que as Sete Quedas fossem mais exuberantes que as rivais de Niagara.
No movimento dos quadris de uma carioca ele teve a certeza de que o carnaval do Rio de Janeiro era o que os americanos chamam de “The Real Thing”.
E que o Mardi Gras, de New Orleans, era uma imitação barata da folia momesca.
Após uma noite com uma mineirinha de Governador Valadares, Paul passou a contemplar a possibilidade de ir ao Brasil, onde teria as mais belas mulheres do mundo ao alcance de suas mãos.
Passou os meses seguintes estudando o país, e teve até algumas discussões com pessoas de sua família.
Ninguém aceitava esse seu arroubo de paixão e compaixão por um país cuja capital era a Argentina.
“Estão vendo? Vocês são uns tapados!”
E foi assim que Paul Mc Intire classificou de propaganda imperialista aquela matéria de página inteira no New York Times.
Nela, o jornalista insensível e tendencioso chamava São Paulo de Capital Mundial dos Seqüestros-relâmpagos e as favelas do Rio de Janeiro de Nova Medellin.
Feliz e animado, ele partiu de New York para um mês de volúpia, caipirinha, pagode, churrasco a rodízio, praia e sol nos doces trópicos do sul.
A viagem não começou muito bem, é verdade.
Sua bagagem foi extraviada e ele ficou com a mesma roupa durante quase dois dias no calor abafado do Rio de Janeiro.
O que lhe valeu foi aquela camiseta com a estampa da Ararinha Azul, que ele comprou ainda no aeroporto do Galeão.
Apesar do abafamento e de pequenos momentos de mormaço não fez sol durante os primeiros 5 dias.
Neste período, registraram-se as maiores enchentes de toda a história da cidade.
Uma tragédia que ele via na televisão do Oton Hotel sem entender direito o que o William Bonner dizia no Jornal Nacional.
Foram dias de tédio e mal-entendidos com os funcionários do hotel, que insistiam em comunicar-se com ele em português.
“Droga, o inglês deveria ser obrigatório no resto do mundo”, resmungou para a camareira de sorriso humilde, fazendo lembrar o homem que era antes de conhecer as brasileirinhas de Queens.
No dia em que a chuva parou, Paul McIntire resolveu sair à caça de mulheres pelo calçadão de Copacabana.
Agora, sim, finalmente, chegara a sua vez.
Cinco horas depois e já um pouco desapontado por não querer sucumbir aos encantos de uma garota de programa com um suspeitíssimo pomo-de-adão, resolveu voltar ao hotel.
Eram quase 3 da manhã quando sentiu o cano frio do revólver encostado em sua nuca.
Mesmo sem falar o português, entendeu direitinho o que os assaltantes queriam.
E foi assim, trajando apenas uma prosaica cueca branca, que Paul McIntire chegou à delegacia do bairro para reportar o crime ao cabo de plantão, mas este também não conseguia captar os detalhes de seu infortúnio.
Uma vez mais, a maldita barreira da língua.
Passou os dias seguintes no quarto do hotel, convalescendo daquilo que pensava ser uma feijoada mal digerida.
Não dava mais.
Pouco mais de uma semana após a sua chegada, desiludido e sem bronzeado  - continuou chovendo no Rio -, Paul McIntire voltou aos States.
Três dias em casa, e ele ainda estava febril, com o corpo dolorido.
Acabaria no leito de um hospital novaiorquino.
O diagnóstico médico causou surpresa entre seus pares, enterrando de vez o fascínio tupiniquim sobre Paul McIntire:
Ele havia sido picado por um mosquito inofensivo, de nome esquisito, um certo Aedes Aegypti.




Saturday, February 9, 2013

Carnaval, o túmulo do samba

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A letra da antiga cantiga diz que quem não gosta de samba não é bom sujeito.
E que é ruim da cabeça ou doente do pé.
Eu gosto de samba, mas não sei sambar.
Sim, tenho um pé bichado, herança dos tempos em que achava que sabia jogar futebol, mas não sambo porque não sambo.
E isto não deveria fazer de mim um mau sujeito.
Gosto de samba de roda, canção e de breque.
Gosto de samba com cheiro e sabor de samba.
E me dá coceira o pagode industrial que tentaram me empurrar goela baixo, posto que, para mim, ele é uma degeneração.
Constato que samba e carnaval se deformaram com o passar dos tempos.
Onde foi parar o Rei Momo?
O que foi feito das colombinas e dos pierrôs apaixonados?
E os bailes de salão, movidos a marchinhas, serpentinas e confetes?
Esse atrofiamento do carnaval de agora me deixa sem graça.
E o bom e velho samba foi banalizado e já não passa de um pretexto - e não de uma razão - para a maior celebração nacional .
O samba já não veste fantasia.
Ele usa um disfarce.
Chamem-me de purista, de antiquado ou do que quiserem.
Rotulem-me como saudosista.
Mandem-me para um museu.
Coloquem-me numa camisa de força.
Despachem-me para Guantanamo Bay ou exilem-me em Cabul.
Mas não me calarei.
Teimo em associar samba e carnaval, embora tenha cada vez mais a certeza de que hoje são coisas bastante distintas, e que já não caminham de mãos dadas.
São como aquele casal que continua vivendo debaixo do mesmo teto, ainda casado, mas não se ama mais.
Uma vez por ano, carnaval e samba saem juntos à rua, cordiais, mas sem afeto.
Um casamento de aparências e de aparências somente.
Com o passar dos tempos, empresários espertos transformaram o carnaval num grande negócio e não existiria nada de errado nisto, se o conceito original não tivesse sido distorcido, adulterado, em detrimento do lucro.
Seria justo que aqueles que fazem a festa – o povo - recebessem um pedaço do bolo. Mas isto não acontece.
Os camarotes patrocinados por grande empresas são uma espécie de virtrine da vaidade por onde circulam apenas os bem nascidos, os bonitos, os famosos, aqueles a quem chamam de VIP.
É para sair bem na tv. E rende um dinheirão.
Uma vez por ano o morro desce à avenida, mas cada pessoa ali é usada como figurante de uma superprodução aos moldes de Hollywood.
Uma produção que travestiu o que deveris ser uma celebração de nossa cultura de raiz.
Tomem o carnaval baiano, por exemplo.
A Bahia possui um dos sambas mais interessantes do Brasil.
O samba de roda baiano tem uma característica própria e é completamente diferente do samba do resto do país.
Mas ele, o samba de roda, não é convidado para o carnaval baiano.
Ali, predomina o axé, um dos piores tipos de poluição sonora já inventado pelo homem.
Ala das baianas, em Salvador, é aquele lugar em que as vendedoras de acarajé se perfilam na margem das ruas para vender quitutes aos turistas.
Carnaval baiano virou sinônimo de axé music, abadás e dancinhas sexistas que já estarão esquecidas e substituídas por outras igualmente descartáveis no ano que vem.
A meu ver, o carnaval da Bahia deveria ter outro nome e ser apenas mais um axé-folia, como tantos outros  que acontecem fora do estado nas micaretas que se reproduziram feito praga.
Melhor seria se mudasse tudo isto de nome e legitimassem a farsa.
Pode ser que, assim, Noel, Dorival, Cartola, Lamartine e seus iguais, descansassem, finalmente, em paz.


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Friday, February 8, 2013

A poesia (na prosa) de Guimarães Rosa


Quase que nada sei, mas desconfio de muita coisa.
(...)

Deus nos dá pessoas e coisas,
para aprendermos a alegria...
Depois, retoma coisas e pessoas
para ver se já somos capazes da alegria
sozinhos...
Essa... a alegria que ele quer
(...)


O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria,
aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem
(...)
 
Viver é um descuido prosseguido.
Mas quem é que sabe como?
Viver...
o senhor já sabe: viver é etcétera...
(...)


Na própria precisão com que outras passagens lembradas se oferecem, de entre impressões confusas, talvez se agite a maligna astúcia da porção escura de nós mesmos, que tenta incompreensivelmente enganar-nos, ou, pelo menos, retardar que prescrutemos qualquer verdade.
Nenhum,nenhuma.
(...)


Viver para odiar uma pessoa é o mesmo que passar uma vida inteira dedicado à ela
(...)


(Guimarães Rosa, príncipe de Cordisburgo, vereda no Grande Sertão)



Tuesday, February 5, 2013

Da moderníssima música portuguesa



Quebramos os dois
(Toranja)

Era eu a convencer-te de que gostas de mim,
Tu a convenceres-te de que não é bem assim.
Era eu a mostrar-te o meu lado mais puro,
Tu a argumentares os teus inevitáveis.


Eras tu a dançares em pleno dia,
E eu encostado como quem não vê.
Eras tu a falar p'ra esconder a saudade,
E eu a esconder-me do que não se dizia.


Afinal...
Quebramos os dois afinal.
Quebramos os dois...


Desviando os olhos por sentir a verdade,
Juravas a certeza da mentira,
Mas sem queimar de mais,
Sem querer extingir o que já se sabia.


Eu fugia do toque como do cheiro,
Por saber que era o fim da roupa vestida,
Que inventara no meio do escuro onde estava,
Por ver o desespero na cor que trazias.


Afinal...
Quebramos os dois afinal,
Quebramos os dois afinal,
Quebramos os dois afinal,
Quebramos os dois...


Era eu a despir-te do que era pequeno,
Tu a puxares-me para um lado mais perto,
Onde se contam histórias que nos atam,
Ao silêncio dos lábios que nos mata.


Eras tu a ficar por não saberes partir,
E eu a rezar para que desaparecesses,
Era eu a rezar para que ficasses,
Tu a ficares enquanto saías.


Não nos tocamos enquanto saías,
Não nos tocamos enquanto saímos,
Não nos tocamos e vamos fugindo,
Porque quebramos como crianças.


Afinal...
Quebramos os dois afinal,
Quebramos os dois afinal,
Quebramos os dois...


É quase pecado que se deixa.
Quase pecado que se ignora.


* Para o meu amigo Jorge Pimenta,
imperador de Braga e arredores.

Sunday, February 3, 2013

A verdade dividida


A porta da verdade estava aberta
mas só deixava passar
meia pessoa de cada vez.

Assim não era possível atingir toda a verdade,
porque a meia pessoa que entrava
só conseguia o perfil de meia verdade.
E sua segunda metade
voltava igualmente com meio perfil.
E os meios perfis não coincidiam.

Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta.
Chegaram ao lugar luminoso
onde a verdade esplendia os seus fogos.
Era dividida em duas metades
diferentes uma da outra.

Chegou-se a discutir qual a metade mais bela.
Nenhuma das duas era perfeitamente bela.
E era preciso optar. Cada um optou
conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia.


Carlos Drummond de Andrade
(Itabira, Minas Gerais, Brasil)

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