Thursday, December 22, 2011

Porque Hoje é Quinta-feira

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Acordei no horário de sempre, preparei café e parece que algo está acontecendo à minha volta. Tem sempre alguma coisa acontecendo, não é mesmo?
Mas hoje é quinta-feira e nada de importante - ou maior - acontece nas quintas-feiras.
Roberto Drummond escreveu que este é o dia mais neutro da semana.
Tão neutro, que poderia ser riscado do calendário e ninguém daria por sua falta.
Ninguém presta atenção nas coisas, às quintas-feiras.
Ninguém faz vigília.
Ninguém fica de prontidão.
Ninguém dá plantão.
É o dia propício para o crime perfeito ou para a fuga do inferno, porque ninguém estará atento.
Ninguém nasce, ninguem morre numa quinta.
Ninguém adoece, ninguém se cura.
A dor fica dormente.
A alegria anestesia-se.
E a felicidade se exila num outro código postal.
É quando as cartas importantes extraviam ou são entregues em endereço errado.
Perceberam que nenhum feriado cai numa quinta?
E ela chega sempre um dia depois das cinzas do carnaval.
Chega sem alegoria, sem enredo, sem fantasia, nem samba no pé.
Não existem golpes de estado neste dia.
As rebeliões se aquietam.
Os motins dormem numa rede.
Não conheço uma única flor das quintas-feiras.
As árvores não farfalham, o vento não venta e o mar desencrespa.
O vulcão arrefece.
Não existem feiras, nas quintas.
O amor não se reconhece no espelho e o ódio abranda.
Ninguem se casa entre a quarta e a sexta.
A areia movediça se firma enquanto o luar também clareia a lama.
E ninguém é engolido.
Ninguém vomita.
Ninguém tem taquicardia.
( o coração mente quietudes).
E, aí, é seguro dizer que ninguém se entope de barbitúricos.
Ninguém dança um bolero. Ninguém rodopia no salão.
Ninguém vende a salvação. Ninguém se salva.
(Até mesmo porque ninguém se salvará).
Ninguém sabe da missa um quinto, na quinta, posto que não existe missa neste dia.
Ninguém canta, ninguém ora, ninguém chora as suas amargas pitangas.
Isto tudo, porque, nas quintas-feiras, Deus e o diabo descansam dentro da gente.
E a gente nem percebe, porque nas quintas-feiras as coisas se desapercebem de nós.



A música qeu Toca Sem Parar:
porque esta canção nunca toca às quintas-feiras, Alguém Cantando, Caetano Veloso e Nicinha... Alguém Cantando.

Thursday, December 15, 2011

Dentro dos olhos de Marina Jardim

















Nos olhos de Marina existe um jardim.
E uma lua feita de argila e uma folia de rei.
Tem um céu feito de estrelas camponesas e um chão rabiscado de giz.
Tem uma frase de congado, o canto de uma rezadeira e um trancelim.
Tem, ainda, um pasto, um chapéu de couro, um gibão, um aboio e um entardecer.
Tem um boi de janeiro.
E boiadas o ano inteiro.
Tem mulheres feitas de barro, homens calejados nas lavouras e crianças esculpidas em nuvens.
Tem o trote de um cavalo, o berro de um carneiro e um cobertor de lã.
Nas veias desta mulher corre um rio cheio de peixes de escama e prata, e meninos brincando nas águas e fazendo ti-bum.
E, nos remansos deste rio abundam jequis, canoeiros, canoas, bancos de areia e um mar, abraçando tudo, onde certamente existirá uma foz...
Nas retinas de Marina vive uma fada, que com o seu condão toca o solo e o transforma em carrossel.
Transmuta carência em cirandas, tristezas em pombas, desesperança em porvir.
Nas pupilas de Marina mora um jeito de olhar que é só dela.
Mora uma delicadeza, uma alegria e um bem-querer.
Moram pés que ganham o mundo e mãos que moldam a vida.
Nas suas telas florescem gerânios, açucenas, semanas-santas e pequis.
E existe uma feira, onde se acha panelas e potes de barro, colher de pau, peneira, cestos, farinha, goma, hortaliças, verduras, frutas e um jeito de existir.
Tem também um arco-íris de mil cores e matizes, que não existem noutro lugar, que não lá.
E é lá que ela garimpa suas cores e inventa seus vermelhos, seus amarelos, seus azuis...
É nesse tear que ela tece retalhos feitos de asas de borboletas, e dá vida aos forrozeiros e cantadores de seu lugar.
É neste cenário que seu pincel coloca os tambores na rua e decreta um estado de euforia e felicidade.
Porque ela é vida. É celebração.
Na sua paleta habitam violas de braços coloridos com laços de fita, bandeirolas e bordados, um papagaio de papel e um pião.
Ela lapida cascalhos de Diamantina, fertiliza palmeiras comunistas em Itaobim, abençoa pecados inocentes em Padre Paraíso e afaga crianças que cantam pelas ruas de Araçuaí.
Marina Jardim tem no peito um coral de lavadeiras.
Tem uma cantiga-de-roda. E uma bandeira do divino.
Tem pincéis que falam a língua do seu povo e cores emprestadas pela pele de sua gente.
Tudo o que ela pinta é lindo e cheio de vida.
Quanto Marina Jardim pinta, ela pinta com os olhos de Deus.


A Música Que Toca Sem Parar:
de Lery Farias e Paulinho Assumpção, na voz de Paulinho Pedra Azul, Jequitinhonha.

Jequitinhonha
Braço do mar
Leva esse canto prá navegar

Traz do garimpo
Pedra que brilha
Mais que a luz do luar

Jequitinhonha
Jequitibarro
Mete essa unha, tira da terra
Vida talhada com as mãos

Já te quis, já te quis, já te quis tanto
Já te fiz, já te fiz, já te fiz sonho
Te cantei, te cantei, te cantei pranto
Como a água da chuva que inunda esse chão...

Wednesday, December 14, 2011

Em Nós













Luís Ruffato é um amigo virtual, muito antes do surgimento da palavra virtual. Trocávamos correspondência na era pré-email e isto só foi interrompido com o surgimento da internet.... Não acreditam? Perguntem a ele...
Ruffato ainda não era um dos grandes escritores do Brasil, mas já era um grande homem, uma figura ímpar.
Ele, que se firmaria como um dos grandes romancistas do Brasil, surgiu em minha vida como poeta. E sempre admirei os versos de sua lavra. Pra mim, ele será sempre o poeta. Um poeta imenso.
E, hoje, quero postar um poema dele.
Uma poema-letra de canção, brilhantemente musicado pelo juizforano Luizinho Lopes, outro amigo querido.
É pra ver-ouvir... e propagar.

EM MIM
(Luizinho Lopes – Luiz Ruffato)


E A SOLIDÃO QUE ORA SINTO
ABISMOS ABISSAIS
E A SOLIDÃO QUE ORA SINTO
ABISMOS ABISSAIS
NÃO É MONTANHA APÓS MONTANHA
É ALGO MAIS
CÉU SOBRE AS MINAS
MÃOS SOBRE AS MINHAS

TALVEZ NÃO ENTENDA
A LENDA SILENCIOSA EM MIM
TALVEZ NÃO ENTENDA
A LENDA SILENCIOSA EM MIM
NÃO É COSTUME APÓS COSTUME
É MUITO MAIS
NÃO ESTÁ EM MIM SÓ
ESTÁ EM MIM
EM MIM EM MIM EM MIM
NAS GERAIS

Tuesday, December 6, 2011

Mil e uma indagações para um passe de calcanhar





















Quantos gols terá marcado o jogador Sócrates?
Quantas vida terá salvado o médico Oliveira?
Quantos passes errados?
Quantas bolas na trave?
Que decisões questionáveis terá tomado homem e jogador?
Onde teria acertado mais do que errado, este senhor?
Onde termina o homem e começa o super-homem?
Onde finda o mito e começa o cidadão?
Seria vermelho o seu sangue e transparente a sua dor?
Quais seriam suas verdadeiras paixões?
Seria a bola, os amigos, a ideologia ou a medicina?
Onde se sentiria com o coração mais pacificado, o homem nascido em Belém do Pará e criado no interior paulista?
Seria feliz numa mesa do Bar Pinguim, em Ribeirão Preto?
Numa mesa de operação de um hospital de periferia ou num estádio de futebol?
Quais seriam as suas influências?
Preferiria Leon Trotsky a Pelé?
Misturaria numa mesma frase Lampião, Adoniran e Macunaíma?
O que o fazia sorrir: uma balada de Chico ou um bolero de Pablo Milanés?
Teria chorado, e de que dor?
Teria tido outro amor, além das chuteiras que calçou?
Teria deixado um pedaço de sua alma no Sarriá, naquela fatídica noite em que Paolo Rossi vendeu a alma ao diabo para nos jogar, brasileiros, no fundo mais fundo do poço do inferno?
Pode ser que sim. Pode ser que não.
Lembrando seus feitos, fico aqui com aquela estranha sensação que todo mortal tem diante de seus ídolos.
Falo o seu nome até com uma certa intimidade.
Sócrates Brasileiro Sampaio de Souza Vieira de Oliveira.
Este era o nome na certidão de nascimento: um ser quilomêtrico.
Um legado.
Magrão, para uns.
Doutor, para outros.
Gênio da raça. Referência.
Classe no ser e no jogar.
Pai, filho, irmão, amigo. Lenda.
Poesia, coração.
Calcanhar, cabeça.
Consciência e irreverência.
Ponderação.
Era um dedo na ferida aberta pelos algozes da ditadura militar. E era a esperança da cura e cicatrização.
Muito mais do que gols, quantas vidas terá tocado, com o condão mágico do seu pensar?
Sim, porque de todas as suas qualidades, aquela que mais me sensibilizou, sempre, foi a sua maneira de pensar.
O futebol do nosso país, mais que uma paixão, teve nele uma referência para além das quatro linhas.
Da boca de Sócrates para a boca do povo, numa tabelinha, a palavra democracia foi verbo e substantivo.
Estávamos na reta final da ditadura militar, os tempos eram difíceis mas ele nos ensinou que existia a felicidade fora de um estádio.
Na madrugada deste sábado insuspeitíssimo, a condição humana - que é o mais implacável de todos os marcadores -, o derrubou. E o juiz da vida nem marcou falta.
No dia 3 de dezembro, aos 57 anos, jogou a sua última partida, chutou sua última bola.
E o país inteiro chorou.


(parida com lágrimas em 6 de dezembro de 2011)


A Música Que Toca Sem Parar:
a parceria genial de Gilberto Gil e Chico Buarque, nas vozes de Chico e Milton Nascimento, um manifesto contra a ditadura militar que o Doutor Sócrates ajudou a vencer com um passe de calcanhar:

Cálice

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como beber dessa bebida amarga
Tragar a dor e engolir a labuta?
Mesmo calada a boca resta o peito
Silêncio na cidade não se escuta
De que me vale ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado
Esse silêncio todo me atordoa
Atordoado eu permaneço atento
Na arquibancada, prá a qualquer momento
Ver emergir o monstro da lagoa

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

De muito gorda a porca já não anda (Cálice!)
De muito usada a faca já não corta
Como é difícil, Pai, abrir a porta (Cálice!)
Essa palavra presa na garganta
Esse pileque homérico no mundo
De que adianta ter boa vontade?
Mesmo calado o peito resta a cuca
Dos bêbados do centro da cidade

Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
Pai! Afasta de mim esse cálice
De vinho tinto de sangue

Talvez o mundo não seja pequeno (Cale-se!)
Nem seja a vida um fato consumado (Cale-se!)
Quero inventar o meu próprio pecado (Cale-se!)
Quero morrer do meu próprio veneno (Pai! Cale-se!)
Quero perder de vez tua cabeça! (Cale-se!)
Minha cabeça perder teu juízo. (Cale-se!)
Quero cheirar fumaça de óleo diesel (Cale-se!)
Me embriagar até que alguém me esqueça (Cale-se!)

Thursday, December 1, 2011

Precisa-se de Homens














(Para Lula Barbosa)
O anúncio no jornal obedece os preceitos que um pequeno anúncio na seção de classificados deve ter: é dinâmico, direto, deixa bem claro o que se busca e a recompensa, mas com duas pequenas diferenças.
O anúncio é bem maior do que os normalmentes publicados na página de Classificados e, no final, não existe um número de telefone de contato.
Mas dá a ler que precisa-se de homens. E que a contratação é imediata.
Precisa-se de homens com boa vontade.
Homens sem igreja.
Nenhuma igreja. Mas que sejam homens de fé.
E que sejam generosos e estejam dispostos a repartir.
Que não aceitem a fome, a falta de um teto, as mazelas do calor e do frio e a injusta distribuição.
E que entendam a diferença entre conhecimento e sabedoria.
Que não sejam couraçados ou invasores.
E que estejam dispostos a apagar com uma borracha as linhas de fronteira, pois a partir de agora, tudo será uma coisa só.
Precisa-se de homens gentis.
Homens que tenham no peito um jardim, e não uma trincheira.
Homens firmes, idealistas, e que levantem uma nova bandeira.
Uma bandeira sem brasão.
Uma bandeira sem ideologia, limpa de sangue e sem tradição de conquistas.
Uma bandeira pura e branca como a pomba de Pablo Picasso.
Como a água de um riacho.
Como o algodão.
Precisa-se de homens que abdiquem da ganância, que abominem o lucro predatório.
E que sejam pacíficos e solidários.
Homens que não sejam o lobo do homem e que sejam o oposto do que representam os falsos profetas de Wall Street.
Que não sejam salvadores de pátrias e de almas.
E que não sejam amigos próximos de Deus.
Precisa-se de homens para a construção de uma grande obra.
Para a maior obra que já foi edificada até aqui.
Uma obra bem maior que a represa de Itaipu, Matchu-Pítchu, as muralhas da China e do que a própria China.
Precisa-se de homens para a construção de uma grande obra.
Precisa-se de homens para a construção de um novo mundo.
E, posto que amor, com amor se paga, paga-se bem.


A Música Que Toca Sem Parar:
Milton Nascimento musicou um poema de Carlos Drummond de Andrade e nassão esta vesão cantada de Canção Amiga.

Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam
E que fale como dois olhos
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos
Eu distribuo segredos
Como quem ama ou sorri
No jeito mais natural
Dois caminhos se procuram
Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os homens
E adormecer as crianças.

Thursday, November 10, 2011

Na bagagem um desassossego



(Para Jorge Pimenta e Laura Alberto)


O que trarei na bagagem desta minha viagem?
Trarei as luzes da cidade derramadas sobre a ribeira?
Trarei a ribeira do D'Ouro e suas águas a um passo da foz?
Trarei barcos carregado de pipas?
Uma janela da torre dos Clérigos?
A proteção do anjo apinhado de pombas no topo do hospital Santo Antônio?
Trarei uma lua cheia?
Trarei estrelas nortenhas?
Trarei azulejos?
Trarei as vielas estreitas desta cidade, como aquelas transportadas em nuvens para as vilas portugueses da Minas Gerais colonial?
Sim, porque existe muito do lugar de onde venho, neste lugar que, agora, visito pela primeira vez.
Existe um certo bairrismo, um orgulho ingênuo, um sotaque distinto e uma quase doçura na voz.
Existem ladeiras que sobem e descem, mercados permeados por um burburinho e um vozerio que ecoa de dentro dos cafés e tascas espalhados por todos os cantos.
É manhã na cidade do Porto e, no que chego, chove, turvando a visão diante de uma paisagem distinta.
Lanço meu olhar-turista sobre pessoas e coisas com a sede dos que tem sede, com a fome dos que tem fome.
E eu chego e sou bem acolhido, já à entrada, sentindo-me imediatamente em casa.
Eu, que caminho por essas ruas como se fossem minhas.
Eu, que sou afeito a intuir e a intuir somente.
Eu, que só sei sentir.
Sei que trarei desta cidade, quando retornar ao lugar que chamo casa, as cenas épicas dos painéis da estação de São Bento.
Trarei a conversa quase intimista do motorista do táxi.
Trarei tripas à moda do Porto, alheiras, tremoços e sarabulhos.
Trarei romãs.
Trarei o gosto picante do molho de uma francesinha degustada numa transversal da rua onde as putas fazem ponto quando cai a noite.
Trarei poemas de Eugénio de Andrade e textos de Valter Hugo Mãe.
Trarei um solo da guitarra de Rui Veloso e uma pedaço de toucinho do céu, fatiado das páginas do menu do Dom Tonho.
Trarei os muros e paredes pichados, espirrados da fúria de um povo que não se dobra ou aceita as injustiças sociais que ainda persistem.
Trarei o doce-azedo das uvas que espremeram para fazer o vinho que embriagou e irmanou todos nós, durante a estada.
O calor dos abraços que entreguei e recebi, mais que em dobro.
Trarei nas malas o luto das roupas negras das mulheres que trafegam pelas ruas, como se ainda vivêssemos num século distante.
Trarei um olhar de adeus diante do mar.
Trarei tradição.
Trarei o peso da história.
E um pedaço dela, impregnado, essa tatuagem nas retinas.
Trarei uma travessia à pé da ponte Dom Luís I.
Trarei as canções de um concerto que reverbera, ainda, como se estivessem frescas como as laranjas dos pomares que adornam todo o norte do país.
Trarei um livro retirado do acervo da livraria Lello, que é uma espécie de relicário nobre das palavras, um dos lugares mais bonitos que meus olhos já viram.
E farei o meu caminho de volta, como quem atravessa um abismo.
Porque o oceano Atlântico é um abismo que separa os dois continentes e impede um abraço.
E eu cumprirei duas vezes este percurso numa agonizante jornada.
Nas despedidas, ficará o refrão de um fado.
No coração, o desassossego dos que deixam para trás um pedaço grande da alma.
Mesmo assim, ficará a sensação de que levo muito mais do que deixo.



A Música Que Toca Sem Parar:

poema de João Monge, interpretação do Trovante.

Monday, November 7, 2011

Três Poemas de Daniel Faria














As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões

As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões
E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
As mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados inclinados
Ao peso dos pássaros que se abrigam.

É à janela dos filhos que as mulheres respiram
Sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
Transformam-se em escadas

Muitas mulheres transformam-se em paisagens
Em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
Nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
Cheias de rebentos

As mulheres aspiram para dentro
E geram continuamente. Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.



Daniel Faria
de Homens Que São Como Lugares Mal Situados (1998)



Caminho sem pés e sem sonhos

Caminho sem pés e sem sonhos
só com a respiração e a cadência
da muda passagem dos sopros
caminho como um remo que se afunda.

os redemoinhos sorvem as nuvens e os peixes
para que a elevação e a profundidade se conjuguem.
avanço sem jugo e ando longe

de caminhar sobre as águas do céu.



Daniel Faria
de Explicação das Árvores e de Outros Animais(1998)



Deve ser o último tempo


Deve ser o último tempo
A chuva definitiva sobre o último animal nos pastos
O cadáver onde a aranha decide o círculo.
Deve ser o último degrau na escada de Jacob
E último sonho nele
Deve ser-lhe a última dor no quadril.
Deve ser o mendigo à minha porta
E a casa posta à venda.
Devo ser o chão que me recebe
E a árvore que me planta.
Em silêncio e devagar no escuro
Deve ser a véspera.Devo ser o sal
Voltado para trás.
Ou a pergunta na hora de partir.



Daniel Faria
de Explicação das Árvores e de Outros Animais
1998


A Música Que Toca Sem Parar:
na interpretação Trovante, a belíssima Peter's.

Encontro uma ilha
Será maravilha ou tem
O que ninguém deu
Durante a viagem
P´ro outro lado

É mais outra ilha
Será que é mais outro porto
Em que se bebeu
E se esqueceu
Um outro fado


Há quem espere por nós assim
Mesmo ao meio da rota do fim
Há quem tenha os braços abertos
Para nos aquecer
E acenar no fim

Há quem tema por nós assim
Quando os barcos partem por fim
Há quem tenha os braços fechados
Com beijo jurado
Eu voltarei pra ti

Nunca é miragem
Sabemos que o cais é certo
É a estrela polar
Em sol aberto
A castigar

Ficamos mais perto
Sentimos mais dentro a força
Do que nós somos
E do que queremos
Reconquistar


Dança de nuvens
O vento é meu companheiro
P´ra me embalar
No meu repouso
De aventureiro

Sunday, October 30, 2011

Das coisas que não morrem jamais

.




















Eu era rapazote em Governador Valadares e começava com o vício da leitura e as invencionices da escrevinhação.
Poesia foi a primeira grande fixação.
Misturava Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire com os catecismos de Carlos Zéfiro e as estórias do Jeca Tatu, do Almanaque Biotônico Fontoura.
Depois descobri a beleza das crônicas, o que acabou se tornando um ofício diário. Era um banquete requentado, é verdade, mas ainda sim, um banquete.
Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga me eram servidos à medida que os jornais do Rio e Belo Horizonte chegavam à cidade, três dias após terem sido publicados.
Os Lima - de posses modestas -, não assinavam aquelas publicações, mas um vizinho que trabalhava numa barbearia chique do centro da cidade as trazia para mim, depois que já haviam sido lidas e relidas pela clientela e um número mais recente as substituía.
Só comecei a gostar dos romances depois de ter experimentado outros gêneros mais curtos. E bem depois. Eu não queria o compromisso duradouro da leitura.
Queria algo rápido, como uma paixão. Os jovens, em geral, são assim.
Impetuosos, apaixonados, preguiçosos e, às vezes, radicais...
Roberto Drummond entrou em minha vida às prestações, bem depois.
Ele assinava uma coluna no Estado de Minas e fazia crônica esportiva com muita poesia. Chamava Reinaldo de Baby Craque. O ponta-esquerda Joãozinho era o bailarino da Toca.
Os craques dos quais não gostava ou não aceitava eram chamados de tigres de papel.
Nunca escondeu de ninguém que era atleticano. É dele a célebre frase adotada por toda a massa carijó:

"Se houver uma camisa preta-e branca pendurada num varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento".

Roberto escrevia com maestria sobre outras coisas, também.
No Segundo Caderno do jornal, transformava Belo Horizonte na Cartagena de Garcia Marquez, na Pamplona de Ernest Hemingway.
Era ali, na fonte que borbulhava à sombra da Serra do Curral, que ele bebia a água da inspiração. Melhor do que nenhum outro escritor da capital mineira desvendou com o toque de sua pena a alma do belorizontino.
Tornava possível o amor da moça da Avenida Barbacena com o rapaz que veio do interior e foi morar em Betim.
Conversava com uma cotovia que lhe dava conselhos de cima dos postes da Rua Rio Grande do Norte.
Promovia duelos de adversários políticos ao pôr-do-sol em plena Praça do Papa, e marchava pela Afonso Pena com pobres miseráveis pedindo terra, trabalho e pão.
Li seu primeiro livro quando já vivia nos Estados Unidos e tornei-me um ardoroso fã.
Em 1988, quando fundei o Brazilian Voice, resenhei um trabalho seu, que acabara de ser lançado no Brasil.
Alguém de passagem por aqui levou-lhe o jornal e, algum tempo depois, recebi um recado dele: queria me encontrar quando fosse a BH.
Um mês depois estávamos no Dona Lucinha comendo feijão tropeiro e bebendo umas e outras. Foi impactante aquele primeiro encontro.
Passamos a nos encontrar sempre, todas as vezes que eu ia ao Brasil. E ficávamos horas a fio conversando sobre tudo e nada nos bares da capital.
Dono de uma generosidade ímpar tomava-me debaixo de suas asas fazendo-me sentir como se fosse um filho querido. O filho varão, que ele não teve.
Quando retornei aos Estados Unidos, ele já era colaborador do Brazilian Voice.
Nunca levou um tostão por suas crônicas, e dizia que um dia cobraria um dólar por cada um de seus inventos publicados no BV. Mas que isto só aconteceria depois que ele ganhasse o Nobel de literatura.
Se eu não cheguei a entrar para a sua família, ele foi, certamente, o primeiro grande nome a entrar para a família Brazilian Voice. E a honraria maior veio com a publicação do livro Hilda Furacão, seu grande sucesso literário, que ele dedicou, junto com outras pessoas, também a mim. Meu querido amigo, cujos títulos de livros tinham uma obcessão pela morte ("Quando Fui Morto em Cuba", "O dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado", "A Morte de Dj em Paris" e "Os Mortos Não Dançam Valsa") me ensinou muito sobre imortalidades e o avesso de certos mistérios do ofício de viver.
Aprendi com ele que as coisas verdadeiras não morrem jamais.
Não morre o amor.
Não morre a amizade.
Não morre a gratidão.
Não morre a saudade.
Como que cumprindo uma sentença assinada por Deus, somos nós que morremos um pouquinho, a cada nascer de sol.
Morremos como morre a juventude, os arroubos desta e tudo o que for apenas paixão.



A Música Que Toca Sem Parar:
na voz de Milton Nascimento, dele e de Fernando Brant, Itamarandiba.

No meio do meu caminho
Sempre haverá uma pedra
Plantarei a minha casa
Numa cidade de pedra
Itamarandiba, pedra comida
Pedra miúda rolando sem vida
Como é miúda e quase sem brilho
A vida do povo que mora no vale
No caminho dessa cidade
Passarás por Turmalina
Sonharás com Pedra Azul
Viverás em Diamantina
No caminho dessa cidade
As mulheres são morenas
Os homens serão felizes
Como se fossem meninos

Monday, October 24, 2011

... no que me despeço de BH




















"Amava em ti a graça das conciliações; eras frugal e fantasista, burocrata e boêmia; tua igreja metodista, pequenininha, enfrentava sem prosápia a lauta matriz de São José; o caminho era um só, escolhia-se a porta que agradasse. E a Praça da Liberdade, com seu Itacolomi de cimento para matar saudades de ouro-pretanos, era metade do Governo, metade dos namorados, em conspiração com as rosas.

Belo Horizonte subitamente trágica na matança dos guardas-civis e no crime do Parque; cidade de mulheres que viravam homem, de homens que viravam mulher; de fenômenos que vinham pelo telégrafo divertir a malícia do carioca, tecidos pela malícia maior do mineiro.

O melhor ponto para completar-te será o terraço de um desses edifícios da Avenida Afonso Pena? A Praça do Cruzeiro, o alto da Serra do Curral? Prefiro o arco modesto do viaduto, miradouro da memória, de cujo cimo tentei às vezes restaurar o romantismo, para consumo próprio e desprazer da polícia.

Costumava haver desencontro entre nossa juventude e nossa cidade. Culpamos as ruas pelo que nos acontece interiormente. Clamei contra ti, Belo Horizonte, em instantes de fúria triste. Destruí tuas placas, queimei tuas casas, teus bondes; ao despertar dessa angústia, vi que o amor escolhe caminhos difíceis para chegar a seu destino. Davas-me lições de paz, que eu interpretava como picadas de tédio."



Carlos Drummond de Andrade
Canção sem metro , a bolsa & a vida


A Música Que Toca Sem Parar:
Paulinho Pedra Azul, Belo caso de Amor.

Sunday, October 9, 2011

O Direito de Sonhar

























(Eduardo Galeano)

Tente adivinhar como será o mundo depois do ano 2000. Temos apenas uma única certeza: se estivermos vivos, teremos virado gente do século passado. Pior ainda, gente do milênio passado. Sonhar não faz parte dos trinta direitos humanos que as Nações Unidas proclamaram no final de 1948. Mas, se não fosse por causa do direito de sonhar e pela água que dele jorra, a maior parte dos direitos morreria de sede. Deliremos, pois, por um instante. O mundo, que hoje está de pernas para o ar, vai ter de novo os pés no chão. Nas ruas e avenidas, carros vão ser atropelados por cachorros. O ar será puro, sem o veneno dos canos de descarga, e vai existir apenas a contaminação que emana dos medos humanos e das humanas paixões. O povo não será guiado pelos carros, nem programado pelo computador, nem comprado pelo supermercado, nem visto pela TV. A TV vai deixar de ser o mais importante membro da família, para ser tratada como um ferro de passar ou uma máquina de lavar roupas. Vamos trabalhar para viver, em vez de viver para trabalhar. Em nenhum país do mundo os jovens vão ser presos por contestar o serviço militar. Serão encarcerados apenas os quiserem se alistar. Os economistas não chamarão de nível de vida o nível de consumo, nem de qualidade de vida a quantidade de coisas. Os cozinheiros não vão mais acreditar que as lagostas gostam de ser servidas vivas. Os historiadores não vão mais acreditar que os países gostem de ser invadidos. Os políticos não vão mais acreditar que os pobres gostem de encher a barriga de promessas. O mundo não vai estar mais em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza. E a indústria militar não vai ter outra saída senão declarar falência, para sempre. Ninguém vai morrer de fome, porque não haverá ninguém morrendo de indigestão. Os meninos de rua não vão ser tratados como se fossem lixo, porque não vão existir meninos de rua. Os meninos ricos não vão ser tratados como se fossem dinheiro, porque não vão existir meninos ricos. A educação não vai ser um privilégio de quem pode pagar por ela. A polícia não vai ser a maldição de quem não pode comprá-la. Justiça e liberdade, gêmeas siamesas condenadas a viver separadas, vão estar de novo unidas, bem juntinhas, ombro a ombro. Uma mulher – negra – vai ser presidente do Brasil, e outra – negra – vai ser presidente dos Estados Unidos. Uma mulher indígena vai governar a Guatemala e outra, o Peru. Na Argentina, as loucas da Praça de Maio vão virar exemplo de sanidade mental, porque se negaram a esquecer, em tempos de amnésia obrigatória. A Santa Madre Igreja vai corrigir alguns erros das Tábuas de Moisés. O sexto mandamento vai ordenar: “Festejarás o corpo”. E o nono, que desconfia do desejo, vai declará-lo sacro. A Igreja vai ditar ainda um décimo-primeiro mandamento, do qual o Senhor se esqueceu: “Amarás a natureza, da qual fazes parte”. Todos os penitentes vão virar celebrantes, e não vai haver noite que não seja vivida como se fosse a última, nem dia que não seja vivido como se fosse o primeiro.


A Música Que Toca Sem Parar:

de Caetano Veloso, na voz de Rita Ribeiro, Oração ao Tempo


És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...


Thursday, September 29, 2011

Estelionato Semântico


















Muitas vezes fazemos mau uso da palavra. Nós a atrofiamos, dando a ela um emprego diferente daquele para o qual foi criada.

No outro dia, vi um comentarista esportivo chamando um determinado jogador de medíocre, como se ele fosse o piorzagueiro do mundo.

Mesmo que ele fosse o pior defensor do planeta, a palavra escolhida pelo jornalista não o colocaria nesta categoria.

Medíocre, que significa "na média", vem sendo usada para designar uma coisa absolutamente sem importância, insignificante.

Outra palavra que me chama bastante a atenção devido ao seu emprego de forma errônea é ignorante.

Chamam de ignorante aquele sujeito destemperado, de estopim curto, estúpido, grosseiro.

Considerar “ignorante” uma pessoa que tem dificuldade em aprender, por exemplo, é errado.

Na minha leitura da vida, ignorante é toda a pessoa que não toma conhecimento de determinada coisa, e escolhe ignorá-la, por mera opção.

Existem ainda palavras que possuem um sentido duplo, mas que com o passar dos tempos acabaram representando apenas um deles.

Fortuna é um destes casos.

Inicialmente era usada - também - para designar o destino de uma pessoa.

Hoje ela é empregada apenas para dizer enriquecer, "fazer fortuna", o que me faz perguntar: seria correto dizer que o dinheiro, se não compra a felicidade, poderia comprar o destino de alguém?

Outra que se perdeu na poeira dos tempos é reivindicar.

Nos tempos antigos reivindicar algo significava “vir ao rei” para pedir alguma coisa.

Nos dias de hoje, com o sistema monárquico existindo em pouquíssimos países, o mundo inteiro utiliza esta palavra sempre que alguém quer pleitear alguma coisa, exigir um direito.

E o rei? Onde ficou o rei?

É de bom tom lembrar, também, que com todas as conquistas ao longo dos tempos, o movimento Feminista ganhou um novo papel na sociedade.

Portanto, algumas pessoas precisam tomar certos cuidados para que não transformem algo tão importante, numa espécie de machismo vestindo saia.

Aprendi com a vivência, por exemplo, que calma não quer dizer frouxidão. E que firmeza não pode ser confundida com truculência.

E paz, meus amigos, não é o contrário daGuerra.

Paz é harmonia, concórdia.

É sossego, tranquilidade.

É calma, repouso.

Um estado de não-beligerância.

Fazera s pazes é reconciliar-se.

E a paz armada, é aquela que se sustenta pelo temor que os inimigos têm um do outro.

Não seria um disparate afirmar que, nenhuma guerra é santa. E que talvez seja o único jogo em que ambos os lados saem derrotados.

Aprendi, ainda, que a covardia não é uma forma de autopreservação. Ela é, isto sim, um sintoma de fraqueza, de pusilanimidade.

E que se saliente que xiita não é sinônimo de fanatismo, mas sim, uma corrente dentro do islamismo.

E que fé e fanatismo são duas coisas completamente diferentes.

Estamos, portanto, em muitos casos, interpretando e a aplicando muitas palavras de forma absolutamente incorreta no nosso cotidiano.

O que vale citar Oscar Wilde, que disse que, sesoubéssemos quantas e quantas vezes as nossas palavras são mal interpretadas, haveria muito mais silêncio neste mundo.


A Música Que Toca Sem Parar:

toda a beleza de Palavra Acesa, de Fernando Filizola, com o Quinteto Violado.


Se o que nos consome fosse apenas fome
Cantaria o pão
Como o que sugere a fome
Para quem come
Como o que sugere a fala
Para quem cala
Como que sugere a tinta
Para quem pinta
Como que sugere a cama
Para quem ama
Palavra quando acesa
Não queima em vão
Deixa uma beleza posta em seu carvão
E se não lhe atinge como uma espada
Peço não me condene oh minha amada
Pois as palavras foram pra ti amada
Pra ti amada
Oh! pra ti amada
Palavra quando acesa
Não queima em vão
Deixa uma beleza posta em seu carvão
E se não lhe atinge como uma espada
Peço não me condene oh minha amada
Pois as palavras foram pra ti amada
Pra ti amada
Oh, pra ti amada
Pra ti amada

Tuesday, September 27, 2011

2 Poemas de Orides Fontela

.









Fala



Tudo
será difícil de dizer:
a palavra real
nunca é suave.


Tudo será duro:
luz impiedosa
excessiva vivência
consciência demais do ser.


Tudo será
capaz de ferir. Será.
agressivamente real.
Tão real que nos despedaça.


Não há piedade nos signos
e nem no amor: o ser
é excessivamente lúcido
e a palavra é densa e nos fere.

(Toda palavra é crueldade)



A estrela da tarde


A estrela da tarde está
madura
e sem nenhum perfume


A estrela da tarde é
infecunda
e altíssima


Depois da estrela da tarde
so há:
o silêncio.


A Música Que Toca Sem Parar
:
Nô Stopa, que vi crescer, filha de um sabiá, cantando da própria lavra Abre Aspas.


Se eu fosse um poeta
E entortasse a minha linha reta
Você me daria um ponto?
Ponto de interrogação
Se eu pusesse meus enfeites
O prazer do meu deleite
Você me daria um ponto?
Ponto de interrogação

Abre aspas e me leva nos meus versos que são seus
Abrevia a minha história
Se o mundo anda tão depressa
Eu não tenho pressa, vou perder a hora
Vou perder o sono,vou passar em claro
Claro que eu não vou passar em branco

Abre aspas e me empresta os seus olhos de ateu
Alivia a minha história
Se o mundo anda em linha reta
Eu ando em linha torta, eu ando do meu jeito
Vou andar à toa, vou ficar na proa
Cansei de ser marujo raso
Vou andar à toa vou ficar na boa
Se o mundo espera então eu faço

Friday, September 9, 2011

Neste 11 de Setembro

.

Como aconteceu no dia 8, no dia 9 e em muitos outros dias que o antecederam, o mundo irá acordar com o sol neste 11 de setembro.
No Tibet, um monge se levantará e fará sua primeira oração da manhã.
Em sua prece, pedirá à divindade que derrame sobre o mundo um manto de luz.
Luz para enxergar na escuridão da intolerância.
Luz para caminhar na retidão dos justos.
Luz para fazer transparecer as almas aflitas deste mundo.
Luz para aqueles que não conhecem outro caminho que não o do ressentimento.
Em Estocolmo, na civilizadíssima Suécia, uma moça loura como uma princesa viking, abrirá a janela para permitir que a brisa fresca de final de verão, entre em seu quarto e se espalhe pelos quatro cantos, trazendo fluidos bons.
Na Espanha, numa casa de pedra da Andaluzia, uma menina cigana cantará um canto místico, um canto gitano da mais pura magia.
Em Varadero, Cuba, uma senhora de setenta anos de idade, confidente dos Orixás, irá a uma cachoeira com uma oferenda de agradecimento.
Ela molhará seus cabelos grisalhos nas águas do riacho, e sentirá escorrendo por seu rosto uma alfazema límpida e confortante.
Tranqüila, entenderá perfeitamente a linguagem dos peixes e conversará com as plantas num idioma que só os graduados da umbanda sabem entender.
Numa savana do Quênia um grupo de meninos sairá correndo, peito nu de encontro ao vento, livres e leves, sentindo na pele uma carícia da natureza.
Nos pampas argentinos, um vaqueiro levará o seu gado para pastar num vale bonito, verdejante, e o minuano soprará ao seu ouvido uma confidência:
- Algo de bom está acontecendo neste instante, aqui no lugar em que habitas.
No limite das duas Coréias, dois camponeses, um de cada lado da História, estarão sentados no espaço imaginário onde, provavelmente, foi desenhada a linha da fronteira e, juntos, dividirão um prato de comida.
Um padeiro francês, na volta de sua derradeira entrega da madrugada, esfacelará os pães que não foram vendidos no dia anterior, e os dividirá com os esquilos famintos da praça.
Numa igreja siciliana, um padre se porá de joelhos evocando a figura perene de Deus e, numa emocionada oração, pleiteará para que o Todo Poderoso derrame sua bondade sobre a humanidade, tocando a cada cidadão, independente de credo ou cor.
Nas ruas de Belfast, na Irlanda, um grupo de católicos e protestantes conversará normalmente, como se todo o ódio e amargura fizesse parte de um passado que deve ser esquecido.
Em Sidney, na Austrália, um aborígine trafegará pelas ruas da cidade sentindo-se parte daquele quadrado de concreto, carros, buzina e progresso.
Na Cidade do Cabo, no extremo da África do Sul, negros e brancos estarão fazendo uma passeata pacífica, uma via-sacra de agradecimento pelo progresso obtido na convivência entre ambos nos últimos tempos. E pela promessa de harmonia de tempos que ainda hão de vir.
Juntos, combinarão que a palavra Apartheid será excluída do dicionário. E sairão dançando pela cidade como se fosse carnaval.
Num bairro distante da zona norte de São Paulo, um grupo de meninos jogará futebol durante o recreio escolar.
Uma moça bonita e bem vestida, saída provavelmente da capa de alguma revista de moda, auxiliará uma anciã a atravessar uma movimentada rua londrina.
Em Santiago do Chile, um motorista mostrará ao turista suíço um grupo de mães numa praça do centro da cidade.
Ao contrário do canto de tristeza pelo desaparecimento de seus filhos durante a ditadura de Pinochet, hoje elas entoam uma marcha folclórica, saudando a chegada da colheita nos campos chilenos.
Numa mesquita da faixa de Gaza, um rapaz que queria ser homem-bomba muda de idéia e promete plantar um jardim. Nesse mesmo instante, em Jerusalém, Ariel Sharon receberá uma comitiva árabe para uma reunião que decretará um cessar-fogo definitivo.
E nós, que vivemos nas cercanias de Nova York, olharemos para o céu cristalino de setembro e nele não haverá nenhum sinal de perigo.
Apenas um bando de pombas brancas, sinalizando a existência de um mundo em paz.


** Essa crônica foi escrita um ano após o ­ataque terrorista de 11 de setembro e será publicada nesta época do ano, enquanto eu viver, como forma de tributo a todos que perderam sua vida no episódio.

Foto de Scott Lewis: David Filipov olha a foto de seu pai, Al Filipov, no painel-tributo erguido no centro de visitação, em Nova York.
Al Filipov era o piloto do primeiro avião da American Airlines Flight a se chocar contra uma das torres do World Trade Center.



A Música Que Toca Sem Parar:
de George David Weiss e George Douglas e , o canto de paz de Louis Armstrong: What a Wonderful World


I see trees of green, red roses too
I see them bloom for me and you
And I think to myself what a wonderful world.

I see skies of blue and clouds of white
The bright blessed day, the dark sacred night
And I think to myself what a wonderful world.

The colors of the rainbow so pretty in the sky
Are also on the faces of people going by
I see friends shaking hands saying how do you do
They're really saying I love you.

I hear babies cry, I watch them grow
They'll learn much more than I'll never know
And I think to myself what a wonderful world
Yes I think to myself what a wonderful world.

Monday, August 29, 2011

Um Belo Poema de Tavares Dias

.















A Vida Toda Em Flor


Para Kikina


Formosa companheira que me acalma os dias,
que me encurta as tardes e me encanta as noites:
desça-te sobre a fronte a água fresca da Vida,
a revelar-te o Tempo e a te acalmar o peito.
Senhora dos meus cuidados e dos meus suspiros:
que ais tens ouvido, que amor me tens dado.
Não te falte o chão, seja leve o fardo.
Plena seja a vida, reta seja a estrada.
Musas povoem teu sono tranqüilo.
Crianças te tragam presentes risonhos.
Floresçam gerânios por entre os teus passos.
Espinhos não vejam cruzares teu rio.
Do Amor verdadeiro tomados sigamos,
ó bela senhora que eu quero e hoje tenho.
Passantes vislumbrem, na nossa morada,
a Luz acesa, aberto o peito, a vida toda em flor.



A Música Que Toca Sem Parar:

Talvez Seja Real, de Fausto Nilo e Geraldo Azevedo, na voz do segundo, Talvez Seja Real:

Parte de mim que faltava
Tanto eu esperava
Te ver
Olhando o tempo
Eu e você
O impossível
Vamos viver
Ilusão
Eu duvido
Talvez seja real
Chegou
Por quanto tempo
Amanheceu
O impossível
Não é pecado
Tire os olhos da parede
Abra as janelas do quarto
Como a laranja e a sede
A gente ainda vai se encontrar
Como a laranja e a sede
Abra as janelas do quarto
Tire os olhos da parede
E essa parte de mim separada
Talvez seja real
Chegou
Por quanto tempo
Amanheceu






Wednesday, August 24, 2011

Dois Poemas e Uma canção de Ferreira Gullar














Traduzir-se


Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.

Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?



***

Primeiros Anos


Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas.
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.



***



A Música Que Toca Sem Parar:
Fagner canta bonito esse poema de Ferreira Gullar:


Cantiga para não morrer


Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.

Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.

Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.

E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.

Wednesday, August 10, 2011

Onde eu nasci passa um rio

.
















Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim

(Ilana Volcov, cantando)

Onde eu nasci passa um rio. Trata-se do Rio Doce, que nasce na serra da Mantiqueira e deságua no Atlântico, em Linhares, no Espírito Santo.

Este rio que ainda corre em minhas veias, foi meu companheiro desde sempre. Nasci às suas margens, numa casinha modesta, em Pedra Corrida, interior do interior de Minas Gerais.

Mas eu fiquei pouquíssimo tempo no lugar em que nasci. Alguns meses após o nascimento, eu acompanharia o seu curso, correnteza abaixo, mudando-me com a família para Governador Valadares.

No bairro São Raimundo ,aprendi a nadar em suas águas, pescava lambaris e piaus, conversava com as pedras. Foi assim a minha infância e adolescência.

O tempo passou, tornei-me adulto e eu sonhava quase todas as noites com meu corpo submerso, uma sensação afobada de afogamento, barrancos, vegetação ribeirinha, o céu engolindo as águas, peixes de escama e couro.

Era um pesadelo que tinha placidez e pressa, fazendo-me acordar suado, amedrontado, sem entender o porque de o mesmo sonho se repetir com tanta frequência.

Há cerca de dez anos, no entanto, minha mãe contou-me uma história que mudaria as minhas noites.

Estávamos jantando em Belo Horizonte e ela falou-me da gravidez que me traria ao mundo.

Contou-me da chegada a Pedra Corrida de minha avó, parteira de excelente reputação, em um tempo que eram raros os hospitais e que praticamente todas as crianças nasciam em casa, naquele interiorzão do Brasil.

Ana Emília chegara um mês antes da data com o intuito de acompanhar a gestante. E, naquele domingo, a família foi para uma prainha que se formava sempre que o rio definhava.

Farofa, frango, refrigerante,cerveja, amigos… Um luxo!

As pessoas chamavam os amigose iam caminhando rio adentro, as águas pela cintura, ancorando nestas pequenas ilhotas arenosas que se materializavam, e ali passavam o dia inteiro.

Uns pescavam com anzol,crianças nadavam e jogavam futebol, mulheres tricoteavam a vida alheia.

E minha mãe foi com meu pai eum grupo de amigos, passar aquele dia de folga no início de dezembro.

Tudo ia muito bem até que ela começou a sentir as contrações.

Temendo que a criança nascesse ali, no meio do rio, dona Rute tentou voltar para casa, na margem esquerda,apavorada e com muitas dores. Mas aquela apressada travessia não passaria de um susto.

Eu nasceria dois dias depois,no meio de uma madrugada, iluminado pela luz de uma lamparina, o cordão umbilical enrolado no pescoço.

Minha avó sempre contava que foi um parto complicado, um dos mais difíceis que fez.

E, desde que minha mãe contou esta história da corrida até a margem, nunca mais voltei a sonhar com o afobamento daquelas águas. Foi como se eu entendesse, finalmente, aquele mistério tão íntimo.

E tinha que ser ela a contar para eu desvendar, de uma vez por todas, o mistério.

Quando completei 40 anos de idade pedi a meu pai que fosse comigo, pela primeira vez, a Pedra Corrida. Eu jamais havia voltado lá.

Saímos de BH bem de manhãzinha e chegamos ao destino por volta da hora do almoço, uma viagem de 300 quilômetros pela rodovia 381.

Descemos a rua principal do vilarejo, um lugar precário e esquecido pelo progresso, e fomos para a rua à margem do rio, onde eu nascera em 1962.

Seu Antônio parou o carro eficou um pouco em dúvida, pois as casinhas eram muito parecidas umas com as outras. Até que se decidiu por uma delas.

- “Foi aqui que você nasceu, meu filho”, disse ele.

Emocionei-me, chorei, tirei fotografias na frente daquele casebre e me encantei com um pé de mini-rosas,que pendia para fora do muro.

Naquele momento, apareceu um homem, que nos observava à distância.

Ele chegou, cumprimentou me upai, disse tê-lo reconhecido e que ele não “dimudô” muito, do início dos anos 60 até então.

Em seguida, disse-nos que aquela não era a casa em que morávamos. Informou que ela já não existia, pois foi levada por uma enchente em 1979, apontando para um terreno baldio, um pouco mais à frente.

Fui até lá e vi, entre os escombros, o que ainda havia de vida naquele pedaço de terra.

Procurei vestígios meus no meio da rala vegetação que brotava onde um dia existiu uma casa, e nada encontrei.

No lugar em que nasci pastava agora, absolutamente incólume, um simpático burrinho.

E eu, que sou de tantos lugares, continuei sendo de lugar nenhum.


A Música Que Toca Sem Parar:
de Caetano Veloso e na voz de Ilana Volcov, "Onde Eu Nasci Passa Um Rio".


Onde eu nasci passa um rio
Que passa no igual sem fim
Igual, sem fim, minha terra
Passava dentro de mim

Passava como se o tempo
Nada pudesse mudar
Passava como se o rio
Não desaguasse no mar

O rio deságua no mar
Já tanta coisa aprendi
Mas o que é mais meu cantar
É isso que eu canto aqui

Hoje eu sei que o mundo é grande
E o mar de ondas se faz
Mas nasceu junto com o rio
O canto que eu canto mais

O rio só chega no mar
Depois de andar pelo chão
O rio da minha terra
Deságua em meu coração

Thursday, August 4, 2011

2 Poemas de Daniel Faria

.
















Sei que o homem lavava os cabelos como se fossem longos
Porque tinha uma mulher no pensamento
Sei que os lavava como se os contasse

Sei que os enxugava com a luz da mulher
Com os seus olhos muito claros voltados para o centro
Do amor, da operação poderosa
Do amor

Sei que cortava os cabelos para procurá-la
Sei que a mulher ia perdendo os vestidos cortados

Era um homem imaginado no coração da mulher que lavava
O cabelo no seu sangue

Na água corrente

Era um homem inclinado como o pescador nas margens para ouvir
E a mulher cantava para o homem respirar


**

Quero a Fome de Calar-me

Quero a fome de calar-me. O silêncio. Único
Recado que repito para que me não esqueça. Pedra
Que trago para sentar-me no banquete

A única glória no mundo — ouvir-te. Ver
Quando plantas a vinha, como abres
A fonte, o curso caudaloso
Da vergôntea — a sombra com que jorras do rochedo

Quero o jorro da escrita verdadeira, a dolorosa
Chaga do pastor
Que abriu o redil no próprio corpo e sai
Ao encontro da ovelha separada. Cerco

Os sentidos que dispersam o rebanho. Estendo as direcções, estudo-lhes
A flor — várias árvores cortadas
Continuam a altear os pássaros. Os caminhos
Seguem a linha do canivete nos troncos

As mãos acima da cabeça adornam
As águas nocturnas — pequenos
Nenúfares celestes. As estrelas como as pinhas fechadas

Caem — quero fechar-me e cair. O silêncio
Alveolar expira — e eu
Estendo-as sobre a mesa da aliança



in "Dos Líquidos"



A Música Que Toca Sem Parar:
meu grupo pop de língua portuguesa favorito, o Trovante... Perigo.

Sai debaixo das pedras
E vai
Vai

Vai mais longe mais fundo
Não mudes de assunto
Só porque é mais fácil

Vai
Vai mais longe vai
Vai ao fundo do fundo
Não mudes de assunto
Há sempre um perigo

Tuesday, August 2, 2011

Um Petardo de Romério Rômulo

.





















não acredite na suavidade dos poetas
cujos versos,
por simples,
são um cavalo em pêlo, no cerrado.

(fuja do poeta
como se foge da doença que se estampa longe.
seu fígado é visgo:nada lhe corrói as entranhas.)

os aços mais duros
não conseguiram lhe desmontar as peças.
seu olhar, sempre sobre,
há que ser medido em trovões.

um poeta qualquer, por mais frágil,
faz terremotos parecerem grilos.


(Romério Rômulo)


A Música Que Toca sem Parar:
do uruguaio Léo Masliah e da brasileira Clara Sandrone, Guardanapos de Papel. Canta, Milton Nascimento.

Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados


Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores


Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas


Não desejam glorias nem medalhas, medalhas
Medalhas, se contentam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos


Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem


Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas


Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retrocedendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados guardanapos
Feito moscas inconclusas


Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
Que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram


Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e ao mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro

Wednesday, July 27, 2011

Ele tem os olhos azuis

.















Ele é louro e tem os olhos azuis.
Ele, que não conviveu com a pobreza, com a fome, ou outro flagelo de equivalente natureza.
Ele, que é louro e tem os olhos azuis.
Ele, que não entrou na fila da sopa, do cobertor de flanela ou da água, geralmente distribuída em caminhões-pipa nas regiões castigadas pela miséria e pela seca.
Ele, um homem louro e de olhos azuis.
Ele, que não cresceu com a pele tostada pelo sol escaldante do deserto, que não viu sua família sofrer torturas em mãos de cupinchas de uma ditadura ou foi doutrinado para ser um homem-bomba.
Ele...
Ele, que não foi menino de rua.
Que não esmolou pelas ruas.
E não vendeu chicletes num sinal de trânsito.
Esse homem que nasceu e cresceu num dos lugares mais civilizados da Terra, que frequentou boas escolas e bem poderia ser um médico, um cientista, um poeta, um professor ou um jogador de hóquei sobre o gelo, tão abundante no lugar em que veio ao mundo.
Ele, que é louro e tem os olhos azuis.
Ele que escolheu o caminho que quis escolher, e a livre escolha é uma benesse, uma conquista ainda disponível nos países democráticos do chamado Primeiro Mundo.
Ele que, entre tantas escolhas, optou pelo ódio.
Pela intolerância.
Pelo terror.
Ele que optou pelo egoísmo e que não calçou – por um segundo que tenha sido – o sapato daqueles que vitimaria com seu desatino.
Ele que não pensou na ferida que abriria no peito de famílias inteiras, hoje, inconsoláveis.
Ele, que espalhou uma dor interminável.
Ele, que separou de uma vez por todas, pais, filhos, mães, irmãos, amigos…
Ele que, com seu egoísmo, sua inconsequência, sua irresponsabilidade, não pensou duas vezes antes de explodir um prédio em sua insuspeitável Noruega.
Ele que nos ensinou que o ódio e a intolerância campeiam, panfletados pelo demônio.
E que o demônio do ódio e da intolerância está recrutando dentro de nossas próprias casas, no seio de nossos lares.
O dono das trevas já não faz adeptos entre miseráveis mal-nascidos, revoltados com as injustiças sociais - infelizmente ainda abundantes neste planeta (o que talvez até nos fosse compreensível -, por civilizada compaixão).
Ele, que plantou o luto.
Que plantou a interminável dor.
E que sorriu diante das câmeras de televisão, esta manhã, em seu caminho para o tribunal.
Vaidoso, fez reluzir seus dentes brancos.
Flash!
Ele, que nos mostrou (de uma vez por todas) que o mal já não possui uma face, e que nosso preconceito erroneamente estigmatizou.
O mal não usa uma burca, um turbante, uma calça furada nos joelhos ou nas nádegas.
O mal que não é mulato e não é cafuso e não é mestiço. Jamais foi.
Somos, todos, ou quase todos, uma semente do mal.
Ele, o demônio, é bem-nascido.
Ele come e bebe e tem abundância de tudo.
Ele, o mau, é você e sou eu, escondidos nesta pele de cordeiro.
Ele, o diabo, é louro e tem os olhos azuis.
Ou castanhos-avermelhados, como os meus.



A Música Que Toca Sem Parar:
de um dos discos que mais me marcaram recolhi Calma Violência, de Fagner e Fausto Nilo.



Calma violência, violência calma
E a pureza da minh alma
E a minha inocência
Calma violência, violência calma

Calma violência, violência calma
E a pureza da minh alma
E a minha inocência
Calma violência, violência calma

Minha mão não tem mais palma
Dói a irreverência
Violência, calma
Brasileira é minha alma

A experiência, violência
Calma violência
A experiência, violência
Calma violência

Tuesday, July 26, 2011

Um Grande Poema de Nina Rizzi

.

















fuga


minha voz, quando te diz, quanto te canta:
"te amo como se ama um passarinho morto",
sabe?

a gente quer pegar na palma da mão, levar ao rosto,
afagar e chorar:
- voa, voa, passarinho morto

Nina Rizzi


A Música Que Toca Sem Parar:
de Milton Nascimento e Márcio Borges,toda a leveza de Benke.



Beija-flor me chamou: olha
Lua branca chegou na hora
O Beija-Mar me deu prova:
Uma estrela bem nova
Na luminária da mata
Força que vem e renova

Beija-Flor de amor me leva
Como o vento levou a folha

Minha Mamãe soberana
Minha Floresta de jóia
Tu que dás brilho na sombra
Brilhas também lá na praia

Beija-Flor me mandou embora
Trabalhar e abrir os olhos

Estrela d'Água me molha
Tudo que ama e chora
Some na curva do rio
Tudo é dentro e fora
Minha Floresta de jóia

Tem a água
tem a água
tem aquela imensidão
tem sombra da Floresta
tem a luz do coração
Bem-querer!!!

Saturday, July 23, 2011

2 Poemas de Alento e Desesperança


La Nave Va


conheci alguns calvários
alguns desertos oásis
tive tristeza alegrias
desafios desenganos
porém nada permanente
quando a vida vira a página
quando amanhece de novo
o que deve ser
vive-se

um olhar
um outro canto
o choro outras palavras
eu deixo a porta sem trava
se o amor quiser partir
outro por certo virá
é a vida seu compasso
a medida do possível

eu sorvo cada momento
eu bebo cada gotinha
eu choro rio padeço
repenso minhas fraquezas
aliso as marcas do tempo
deixo a vida dar os passos
voe ou rasteje
prossigo

sofres eu sofro junto
alegro-me quando te alegras
sou aquela caravela
que em plena calmaria
encontrou um norte
um rumo

se a bonança acabar
voltarem o vento e a chuva
um dia chega o estio
:
haverá amanhãs




















(Líria Porto, Araguari, Minas)



Sobre.aviso


Se, de fato, é o meu amor que queres
Abrace com intimidade as simples coisas
Não precisas deixar que dobrem os sinos
Anúncios podem assustar um frágil coração
E quanto a mim...
Se ficar escuro, só preciso encontrar tua mão.

Se pular em precipícios é o que me fere
Resistirei aos delírios com toda minha força
Não acenderei fogos que sejam de artifícios
Águas calmas também movem uma paixão
E quanto a ti...
Só me dê beijos que não me deixem dizer não.


























Adriana Araújo
(São Luís do Maranhão)


A Música Que Toca Sem Parar:
de Mongol e Oswaldo Montenegro, Como se Estivesse Fora, na voz de José Alexandre.

Me diz como é que faz
Finge que eu cheguei agora
Finge que eu não sei do engano, ah!...
Finge que eu não vi
Me fala sobre mim
Como se eu estivesse fora
Mostra a foto do outro ano,é
Finge que eu não vi
Me roubei da estrela
e é como se eu fosse a luz e ela eu
Vim banhado em cor e a estrela
É o que eu fui e ainda sou em ti
E aí dói tanto vê-la
Como dói hoje olhar pra estrela
Que eu marquei em ti



Sunday, July 10, 2011

Filha de Peixe...

Haydee Milanés é filha de Pablo Milanés. Esta canção é de sua autoria, lindíssima.

Música cheia de curvas, melodiosa, e que me emociona muitíssimo.




No escatimes un Segundo para amar
Que nunca se sabe que vendrá mañana.

Hazlo todo menos imposible,
No apagues el brillo de tus ojos
Con el frió de una lagrima.

Una sola vida se me hace tan larga
Cuando se me encarna la nostalgia.

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos.

Tú y yo,
Perdidos en el cielo, desnudos.

Y en cualquier lugar que estés
Te encontrare, mi amor.
No mires la brújula, te vas a perder.

Voy oliendo el viento;
Es tu perfume quien me guía.
No creo en presagios que me aparten de tu vida.

Una sola vida se me hace tan corta
Cuando se me antoja ese deseo de tenerte hasta la
Ultima gota.

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos.

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos

Tú y yo,
Viajando en el amor sin rumbo,
Perdidos en el cielo, desnudos

Thursday, July 7, 2011

Survivor, Brazilian Style


















Fim de domingo, estatelado no sofá da sala, brincando com o controle remoto da tv, deparo-me com o Survivor, um reality show em que os participantes são despachados para um canto esquecido do planeta e tem que se virar nos trinta, como recomendaria o Faustão.
Passam cerca de 40 dias embrenhados na mata, vivendo em abrigos improvisados, caçando e pescando para comer com lanças feitas de madeira, extraem fogo de pedras, como na pré-história.
Mauricinhos, caipiras, aspirantes a modelo, desajustados, cowboys de meia-espora, manicures, donas de casa e pessoas de diferentes regiões do país são divididos em duas turmas e o bicho pega, com a realização de provas de sobrevivência que contam pontos e dão prêmios cobiçados como uma caixa de cerveja gelada, um café da manhã com direito a bacon e croissants, um canivete suíço ou uma sempre disputadíssima caixa de fósforos.
Uma vez por semana, os participantes votam pela saída de um dos seus. Eles vão se dizimando, como canibais de si próprios, até que seja apontado o vencedor.
O Brasil teve uma versão deste enlatado, que parece não ter emplacado muito bem, ao contrário do Big Brother, que virou mania nacional, transformando nulidades em celebridades e recheando as páginas das revistas masculinas de “carne novinha em folha”.
Abomino o Big Brother.
Não o assisto por aqui, não o assistiria se vivesse no Brasil ou em qualquer outra parte do mundo onde se fabrique sumidades do quilate de Alberto Cowboy, Diego Alemão e o filósofo Cléber Bambam, aquele que fez o país inteiro dizer “faiz pairte”.
Como sei o nome destes e de tantos outros big brothers? Ora, como não saber?
Em época de Big Brother, eles ganham mais espaço na mídia do que o lançamento do livro de Chico Buarque, o mais recente poço de petróleo descoberto à unha por Eike Batista ou o novo escândalo político em Brasília.
Aliás, político deve adorar o Big Brother.
Isso é garantia de que o olhar de quase 200 milhões de brasileiros está nas coxas de beldades do calibre de Sabrina Sato ou de Pryscila, uma indiazinha bem bonitinha do Mato Grosso, que mostrou seu piercing genital numa edição da Playboy.
Quem quer saber de mensalão, mensalinhos e deputados donos de castelos, quando o país inteiro rói as unhas para saber quem vai sair da casa?
Mas eu falava do Survivor (O Sobrevivente, para os recém-chegados e ainda não familiarizados com a língua inglesa)...
A edição deste ano foi realizada no Brasil. Para ser mais exato, em Tocantins.
Entre muriçocas, rios infestados de piranhas, aranhas caranguejeiras, cobras de todos os calibres e feras da fauna brasileira, a turma se engalfinhou pelo direito de levar para casa a bagatela de 1 milhão de dólares.
Fiquei pensando, enquanto admirava a belíssima paisagem que servia de pano de fundo para o programa, se a produção precisava mesmo tê-los mandado para os cafundós de Tocantins, quando a intenção era testar a resistência física e mental dos participantes.
E minha mente desocupada passou a bolar um Survivor brasileiríssimo, com provas bem mais difíceis para os participantes, do que atravessar rústicas pinguelas com os ombros carregados de balaios d’água.
Queria ver essa turma passar pelas provas diárias dos legítimos survivors brasileiros.
Para começo de conversa, queria vê-los alimentando uma família de 5 pessoas com um salário mínimo, como fazem milhões de pessoas.
Pensam que é moleza? Como prêmio para a equipe vencedora dessa prova, caberia um bolsa-família.
Embarque um mauricinho novaiorquino num lotação em São Paulo às 5 da manhã e, após repetir esse processo mais duas vezes todos os dias, deixem-no guardando carros numa avenida paulistana.
Uma patricinha, dessas aspirantes a modelo, enviem-na para uma casa de madame, e a deixem lá, uma semana inteira, comendo o pão que o diabo amassou com o rabo.
Esse countryboy do Alabama que venceu o Survivor no último domingo, eu mandaria para uma plantação de cana no sertão de Pernambuco, e veria a veridicidade de sua familiaridade com os outdoors, essa que supostamente foi seu passaporte para a vitória.
Ao invés de comerem peixe cru (quem não gosta de um bom sushi?), coloquemos em seus espetos um bom e apimentado acarajé, testículos de boi, buchada de bode e eles iriam mudar o nome do programa para Fear Factor, the Brazilian Edition.
Uma outra prova seria parar o carro de janela aberta, após as dez da noite, num sinal de trânsito de qualquer capital brasileira.
Outra prova dificílima seria trancar todo mundo num quarto assistindo os programas de Ratinho ou de Luciana Gimenez.
Quem resistisse mais tempo, ganharia o cordão de imunidade pelo resto da vida.
Numa das provas de resistência mais difíceis, mandaria os participantes para Jaguariúna ou Barretos e os deixaria lá por dias a fio, sentados em confortáveis cadeiras no centro da arena de rodeio, escutando shows consecutivos de Zezé di Camargo e Luciano, Leonardo, Daniel, e Bruno e Marroni.
Para dificultar um pouquinho mais, mandaria os finalistas vestirem uma camisa rubro-negra, os soltaria no Maracanã, bem no meio da torcida do Vasco, gritando Mengôôôô…
Quem sobrevivesse levaria para casa, merecidamente, o tão cobiçado milhão.


A Música Que Toca Sem Parar:
de e com Zé Ramalho, Admirável Gado Novo.

Friday, July 1, 2011

Dois Poemas de Pessoa, Uma Canção na Voz de Renato Braz























Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.


Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.


Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.


Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.


Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?


Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chava, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.


(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)


Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, em rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.


(Tu que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)


Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente


Fiz de mim o que não soube
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.


Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-me como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.


Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o deconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,


Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.


Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.


Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.


(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.
O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.



Álvaro de Campos, 15-1-1928



Segue o Teu Destino


Segue o teu destino
Rega as tuas plantas
Ama as tuas rosas
O resto é a sombra
De árvores alheias

A realidade
Sempre é mais ou menos
Do que nós queremos
Só nós somos sempre
Iguais a nós próprios.

Suave é viver só
Grande e nobre é sempre
Viver simplesmente
Deixa a dor nas aras
Como ex-voto aos deuses

Vê de longe a vida
Nunca a interrogues
A resposta está além dos deuses.

Mas serenamente
Imita o Olimpo
No teu coração
Os deuses são deuses
Porque não se pensam


(Ricardo Reis)


A Música Que Toca Sem Parar:
Renato Braz, minha voz favorita, gorjeia Segue o Teu Destino, de Ricardo Reis... Pessoa que era três, que era milhões). A melodia é de Sueli Costa.