Saturday, July 31, 2010



Das coisas que não morrem jamais


Eu era rapazote em Governador Valadares e começava com o vício da leitura e as invencionices da escrevinhação.
Poesia foi a primeira grande fixação.
Misturava Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire com os catecismos de Carlos Zéfiro e as estórias do Jeca Tatu, do Almanaque Biotônico Fontoura.
Depois descobri a beleza das crônicas, o que acabou se tornando um ofício diário. Era um banquete requentado, é verdade, mas ainda sim, um banquete.
Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga me eram servidos à medida que os jornais do Rio e Belo Horizonte chegavam à cidade, três dias após terem sido publicados.
Os Lima - de posses modestas -, não assinavam aquelas publicações, mas um vizinho que trabalhava numa barbearia chique do centro da cidade as trazia para mim, depois que já haviam sido lidas e relidas pela clientela e um número mais recente as substituía.
Só comecei a gostar dos romances depois de ter experimentado outros gêneros mais curtos. E bem depois. Eu não queria o compromisso duradouro da leitura.
Queria algo rápido, como uma paixão. Os jovens, em geral, são assim.
Impetuosos, apaixonados, preguiçosos e, às vezes, radicais...
Roberto Drummond entrou em minha vida às prestações, bem depois.
Ele assinava uma coluna no Estado de Minas e fazia crônica esportiva com muita poesia. Chamava Reinaldo de Baby Craque. O ponta-esquerda Joãozinho era o bailarino da Toca.
Os craques dos quais não gostava ou não aceitava eram chamados de tigres de papel.
Nunca escondeu de ninguém que era atleticano. É dele a célebre frase adotada por toda a massa carijó:

"Se houver uma camisa preta-e branca pendurada num varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento".

Roberto escrevia com maestria sobre outras coisas, também.
No Segundo Caderno do jornal, transformava Belo Horizonte na Cartagena de Garcia Marquez, na Pamplona de Ernest Hemingway.
Era ali, na fonte que borbulhava à sombra da Serra do Curral, que ele bebia a água da inspiração. Melhor do que nenhum outro escritor da capital mineira desvendou com o toque de sua pena a alma do belorizontino.
Tornava possível o amor da moça da Avenida Barbacena com o rapaz que veio do interior e foi morar em Betim.
Conversava com uma cotovia que lhe dava conselhos de cima dos postes da Rua Rio Grande do Norte.
Promovia duelos de adversários políticos ao pôr-do-sol em plena Praça do Papa, e marchava pela Afonso Pena com pobres miseráveis pedindo terra, trabalho e pão.
Li seu primeiro livro quando já vivia nos Estados Unidos e tornei-me um ardoroso fã.
Em 1988, quando fundei o Brazilian Voice, resenhei um trabalho seu, que acabara de ser lançado no Brasil.
Alguém de passagem por aqui levou-lhe o jornal e, algum tempo depois, recebi um recado dele: queria me encontrar quando fosse a BH.
Um mês depois estávamos no Dona Lucinha comendo feijão tropeiro e bebendo umas e outras. Foi impactante aquele primeiro encontro.
Passamos a nos encontrar sempre, todas as vezes que eu ia ao Brasil. E ficávamos horas a fio conversando sobre tudo e nada nos bares da capital.
Dono de uma generosidade ímpar tomava-me debaixo de suas asas fazendo-me sentir como se fosse um filho querido. O filho varão, que ele não teve.
Quando retornei aos Estados Unidos, ele já era colaborador do Brazilian Voice.
Nunca levou um tostão por suas crônicas, e dizia que um dia cobraria um dólar por cada um de seus inventos publicados no BV. Mas que isto só aconteceria depois que ele ganhasse o Nobel de literatura.
Se eu não cheguei a entrar para a sua família, ele foi, certamente, o primeiro grande nome a entrar para a família Brazilian Voice. E a honraria maior veio com a publicação do livro Hilda Furacão, seu grande sucesso literário, que ele dedicou, junto com outras pessoas, também a mim. Meu querido amigo, cujos títulos de livros tinham uma obcessão pela morte ("Quando Fui Morto em Cuba", "O dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado", "A Morte de Dj em Paris" e "Os Mortos Não Dançam Valsa") me ensinou muito sobre imortalidades e o avesso de certos mistérios do ofício de viver.
Aprendi com ele que as coisas verdadeiras não morrem jamais.
Não morre o amor.
Não morre a amizade.
Não morre a gratidão.
Não morre a saudade.
Como que cumprindo uma sentença assinada por Deus, somos nós que morremos um pouquinho, a cada nascer de sol.
Morremos como morre a juventude, os arroubos desta e tudo o que for apenas paixão.



A Música Que Toca Sem Parar:
de um dos primeiros discos que comprei nesta vida, Alucinante Alice, Sá & Guarabyra.

Dentro do nosso mundo
Um outro mundo achaste
E as cores de que fala
Eu não conhecia
Alguma coisa havia antes desse espaço
No oco da nogueira um tombo no infinito
De cada biscoito tiraste um pedaço
Pode ouvir teu grito

Alucinante Alice quando você fala
Meu coração se quebra como louça
Alucinante Alice quando você beija
O mel dos anjos entra em minha boca,
em minha boca,
em minha boca

A porta da verdade estava bem fechada
Mas nada resistiu a chave que eu te trouxe
Daqui de onde se vê ainda não se vê nada
Se não se tem os dentes presos nesse doce
De limão galego de laranja amarga, de batata doce.

Thursday, July 29, 2010

3 Poemas de Albano Martins

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Ainda te falta

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.


Ofício

O que aos dedos
emprestas
à mão
subtrais. Nocturno
ofício o teu: transbordas
para a luz como a polpa
macerada das maçãs.


A lâmina, o punhal


Não haverá futuro — e haverá
somente esta lâmina
de quartzo lacerando
a carne amarrotada. E haverá
somente este punhal
de cinza cravado
entre almofadas inúteis
e lençóis vazios.


A Música Que Toca Sem Parar:
do último disco do Trovante, Baltazarblimunda, bebida até a última gota dos personagens de José Saramago.

Tuesday, July 27, 2010














A prainha do Xuá



Aqui, quando faz frio é de rachar a mamona. Mas quando faz calor, é de cozinhar os miolos. De clichê em clichê vamos levando a vida.
Tenho visto tanta gente reclamando do calor, que às vezes entro no coro destes descontentes e ponho-me a maldizer os deuses da meteorologia.
Memória curta, temos nós, eternos insatisfeitos.
Se faz frio, é porque faz frio.
Se neva, é porque neva.
Se chove, é porque chove.
Se faz calor, é porque faz calor.
Criei-me em Governador Valadares, que julgava ser o lugar mais quente do mundo. Um Saara sem beduínos, sem camelos e nem tempestade de areia.
No meu coração, Valadares será para sempre um oásis, de brisas benfazejas, belas odaliscas, e xeiques de riquezas invisíveis.
Como era bonita, e quente, a minha Gevê! Tão quente, que um jornalista de passagem pela cidade escreveu um texto de onde chamou “sucursal do inferno”.
Em Valadares vi um sujeito fritar um ovo no capô de um fusca.
Vi o Rio Doce emagrecer, todo ano, sua cintura afinando e produzindo dezenas de praias ao longo de seu curso. A mais famosa delas era a praia do Xuá, numa ilhota próxima à ponte São Raimundo. Era para lá que íamos.
Foi naquela ilhota que, menino ainda, vi um índio.
Aliás, um bugre, que é como os adultos a ele se referiam.
No meu desconhecimento de geografia, imaginava que um bugre era alguém vindo de um país distante, talvez na Cordilheira dos Andes, talvez na fronteira da Indonésia.
Bugrelândia?
Bugrária?
Seria um bugre, o mesmo que um búlgaro?
Criança, ainda, pensei ter desvendado o mistério: o homem seria de Campinas, terra do Guarani, clube de futebol que tem um bugrezinho como mascote.
E o meu bugre ficava acocorado na porta de um palheiro, debulhando milho e bebendo cachaça, que os brancos davam para ele.
Aquele índio era uma espécie de guardião da ilha, onde plantava algumas coisas e criava galinhas.
Não tinha mulher nem filhos.
Não tinha nada, aquele pobre homem de cabelos lisos e desgrenhados.
Era ali onde ele dormia sozinho escutando apenas a música das criaturas da noite e o barulho da correnteza bolinando as pedras.
Era ali o seu reino de um homem só.
E sua prisão rodeada de águas.
Quando o calor aumentava na cidade a ponto de quase explodir os termômetros, o rio ia definhando e formando suas prainhas, o Xuá era o destino de muitos de nós.
Tinha muito de paraíso naquelas areias brancas.
Do fundo de nossas precariedades, aqueles prazeres temporões saciavam uma sede muito maior que a nossa sede de mar e de amor.
De quebra, ainda nos oferecia uma oportunidade única de socialização.
Farofa geral, sim, meus senhores.
Abaixo o calor! Viva a praia mineira!
Garrafa de pinga, meio engradado de cerveja em encardidas caixas de isopor, refrigerantes, frango assado e farofa.
Muita farofa.
Confesso que fui useiro e vezeiro. Confesso…
Homens jogavam carteado, mulheres tricoteavam sobre a vida alheia, enquanto as crianças jogavam futebol com uma bola de plástico da marca Pelé. Uma pobreza de não dar dó.
Muitas vezes nos afastávamos dos adultos e saíamos explorando as margens, roubando manga, jambo, jenipapo e ingá dos quintais ribeirinhos.
Não raro, éramos expulsos a tiros de sal. Uma vez mais, confesso.
Alguns de nós aproveitavam a oportunidade e lançavam a sorte nas pescarias.
Tinha muito piau, lambari, tucunaré, curimatã, bagre e corvina.
Nadávamos, mergulhávamos, pescávamos e passeávamos de pedra em pedra como se não existisse o amanhã.
E, para alguns, não existia mesmo.
Muita gente perdeu a vida se refrescando nas águas traiçoeiras daquele rio.
E se, as mortes ocasionais serviam como alerta para os perigos das águas, elas não eram amedrontadoras o suficiente para nos afastar de lá.
O medo de morrer afogado terminava antes da missa do sétimo dia.
Tenho saudade das prainhas do Rio Doce, confesso.
Tanta saudade que, hoje, vendo o sol e o calor nos transformar nessas insuportáveis bola de mau humor, carne e suor, daria qualquer coisa para aportar numa prainha como aquela do Xuá.
Ficaria quietinho, sobre uma pedra lodosa, sentindo as águas do tempo passeando tranqüilas sobre meu corpo, levando meus cansaços, meus pecados, minhas culpas.

A Música Que Toca Sem Parar:
de Zé Geraldo (foto), aquele que deveria ser o hino de Governador Valadares, infelizmente desautorizado pelo ex-prefeito Mourão (por ter a palavra seio, acreditem), a bela e verdadeira Rio Doce.

Deposito em suas águas meu grande segredo
Parto pra cruzar fronteiras, engrossar fileiras
Compor meu enredo
Deixo suas margens ricas sob a sombra lírica da Ibituruna
Una, pobre sabiá, que perdeu seu canto de frases ligeiras
Por ver se apagar a ilusão ardente
Tão inconseqüente da paixão primeira

Oh! Meu Rio Doce, doce são os seios da morena flor
Cor do seu Ipê
Que vive sob as gameleiras, pés de jenipapo
Junto de você
Leva essa morena no seu leito manso
Faz o seu remanso se vestir de azul
Que eu tô levando a minha mocidade
Pras velhas cidades e praias do sul
Tô levando a minha mocidade pras velhas cidades
E praias do sul

Sunday, July 25, 2010

3 Poemas de Vasco Gato

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haverá talvez um modo de amanhecer
que revele nos olhos o secreto ardor
com que se levanta o trigo enorme.

haverá talvez um lago que a noite não toque
e de dia em dia, como ontem, como amanhã,
cante a mulher que ali foi ver nascer o filho.

haverá talvez um suor que não o do sacrifício
e com o qual a pele cintile como uma borboleta
que vem descendo o céu até à flor dos teus lábios.

haverá talvez uma fala onde nos poderemos encontrar
sem que a tua mão esqueça a minha, sem que o sorriso
esconda o vazio, uma fala que só possa e saiba dizer nós.

haverá talvez um poema em que o soluço aperte as veias
como o rio aperta o mar, um poema em que eu e tu
dormimos sobre o luminoso esplendor do universo.

**

dedos e dedos


voa comigo nos ombros da noite
enlaçados como dedos e dedos
na ternura completa das mãos.

inventemos asas até que nos
tenham como irmãos os pássaros
e as crianças nos persigam
pelo areal - o voo que é delas também.

acredita que o nosso olhar tocará um dia
o horizonte com tal força que a nossa palavra
ficará redonda, redonda como os ombros
desta noite em que te convido a descobrires
comigo o amor enorme que a maré nos tem


quando nos cobre os pés e nos obriga a nascer.

***

imensamente nos deitamos um no outro

e não mais nascemos para a mão escura

que tapa o sol e afoga a lua

estamos como se tudo estivesse connosco

e connosco estivessem os nomes que primeiro se deram

flor rio azul estrela terra

*


A Música Que Toca Sem Parar:
Secret Garden, Elan.

Wednesday, July 21, 2010












Tramas de um tema fugidio

Nem sempre quem vive do ofício de escrever consegue traduzir em palavras as suas visões, obsessões e sentimentos.
Eu já me frustrei em várias situações, vendo-me obrigado a enterrar temas que julgava bons.
Alguns eram de cunho pessoal, outros meramente circunstanciais.
Os circunstanciais costumam passar.
Os de cunho pessoal, não.
E ficam ardendo em quem não teve lastro para parir seu invento, marcando na pele da alma como se ferro quente fosse.
Quando minha avó morreu, eu quis escrever uma crônica declarando a ela todo o meu amor. Tínhamos uma história maior do que aquelas normalmente inerentes - e que já são imensas, por si - a uma avó e seu neto.
Eu, que nasci à luz de uma lamparina numa cidadezinha do interior de Minas Gerais, tive em Ana Emília a parteira.
Foi por suas mãos que vim ao mundo.
Ela foi a primeira pessoa a me tocar e a embalar um choro meu.
Cresci apreciando seus frangos ao molho pardo, seus biscoitos de polvilho e a habilidade de alinhavar versos de encantadora pureza.
Acho que meu gosto pela poesia veio dali, daquelas singelas trovinhas de Ana Emília.
Mas Ana Emília se foi.
Ao contrário de tanta gente que pede a conta da vida, paga e sobe, contente, Ana Emília driblou, o quanto pode, o “garçom” do viver.
Tinha 104 anos quando se viu obrigada a assinar a fatura.
Deixou saudades, lições preciosas, e uma lacuna impossível de ser preenchida.
Senti tanto sua morte, que não logrei escrever absolutamente nada que traduzisse o que sentia - e sinto - por ela.
Sentava-me à frente do computador e não conseguia digitar mais do que meia dúzia de frases. Lia em voz alta, relia, tentava costurar palavras às emoções e apagava tudo, logo a seguir.
Mais de um ano depois de Ana Emília nos ter deixado, vira e mexe, a vontade de escrever alguma coisa para ela renasce.
E me ilude, uma vez mais.
Como uma brasa acesa pela brisa da saudade, a fogueira da inspiração chega a se insinuar. Mas bate um vento mais forte que a tudo apaga, bloqueando as emoções.
E uma chuvinha fina, a do desânimo, começa a respingar sobre as idéias, arrefecendo o desejo de homenagear minha avó.
Mas esta não é a única frustração neste, digamos, “departamento”.
Existem outros temas que também não foram bem resolvidos, mas que o precisam ser.
Durante um bom tempo de um tempo bom da minha vida, pensei em escrever uma história de amor.
O palco: Santana dos Ferros, terra de Roberto Drummond, uma figura definitiva em minha trajetória de operário da palavra.
Como um pupilo que provocasse o mestre, eu queria surpreender Roberto, que tinha obsessão pela morte. Seus livros evocavam isto:
Quando Fui Morto em Cuba, A Morte de D.J. em Paris, O Dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado, Os Mortos Não Dançam Valsa, sua última publicação, atestam bem essa obsessão.
E eu queria algo que evocasse e celebrasse a vida.
Uma estória que, ao contrário das suas, tivesse um final feliz.
Uma estória simplória como a água da chuva, cuja sofisticação residisse justamente nessa singularidade.
Não haveria eletrizantes perseguições policiais, mas uma charrete rodando numa estrada de pé-de-moleque, ao som da percussão das ferraduras batendo nos cubos de pedra.
Ao invés de ditadores e espiões truculentos, crianças correndo pelo jardim forrado de margaridas, lírios e jasmins.
Ao invés de assassinos de aluguel, seresteiros.
Ao invés do estampido de tiros de pistolas, espingardas e metralhadoras, a suavidade de cavaquinhos, bandolins, violões e uma flauta.
Ao invés de golpes de estado, saraus.
E uma lua cheia cuja luz atravessasse a vidraça e a cortina do quarto desta aludida casa das margaridas, e iluminasse um casal trocando beijos e juras de amor eterno.
Mas sei que Roberto Drummond acharia essa idéia ingênua demais.
Ele certamente não me permitiria escrevê-la, até o fim.
Meu mestre sempre preferiu beber da água turva do caos.
Ou a morte pela sede, com a dramaticidade apropriada de um personagem seu.



A Música Que Toca Sem Parar:

Milton Nascimento canta, de Clara Sandroni e Leo Masliah, o manifesto desta legião de adoráveis tão perdedores quanto eu... Guardanapos de Papel.



Na minha cidade tem poetas, poetas
Que chegam sem tambores nem trombetas
Trombetas e sempre aparecem quando
Menos aguardados, guardados, guardados
Entre livros e sapatos, em baús empoeirados
Saem de recônditos lugares, nos ares, nos ares
Onde vivem com seus pares, seus pares
Seus pares e convivem com fantasmas
Multicores de cores, de cores
Que te pintam as olheiras
E te pedem que não chores
Suas ilusões são repartidas, partidas
Partidas entre mortos e feridas, feridas
Feridas mas resistem com palavras
Confundidas, fundidas, fundidas
Ao seu triste passo lento
Pelas ruas e avenidas
Não desejam glorias nem medalhas, medalhas
Medalhas, se contentam
Com migalhas, migalhas, migalhas
De canções e brincadeiras com seus
Versos dispersos, dispersos
Obcecados pela busca de tesouros submersos
Fazem quatrocentos mil projetos
Projetos, projetos, que jamais são
Alcançados, cansados, cansados nada disso
Importa enquanto eles escrevem, escrevem
Escrevem o que sabem que não sabem
E o que dizem que não devem
Andam pelas ruas os poetas, poetas, poetas
Como se fossem cometas, cometas, cometas
Num estranho céu de estrelas idiotas
E outras e outras
Cujo brilho sem barulho
Veste suas caudas tortas
Na minha cidade tem canetas, canetas, canetas
Esvaindo-se em milhares, milhares, milhares
De palavras retrocedendo-se confusas, confusas
Confusas, em delgados guardanapos
Feito moscas inconclusas
Andam pelas ruas escrevendo e vendo e vendo
Que eles vêem nos vão dizendo, dizendo
E sendo eles poetas de verdade
Enquanto espiam e piram e piram
Não se cansam de falar
Do que eles juram que não viram
Olham para o céu esses poetas, poetas, poetas
Como se fossem lunetas, lunetas, lunáticas
Lançadas ao espaço e ao mundo inteiro
Inteiro, inteiro, fossem vendo pra
Depois voltar pro Rio de Janeiro

Monday, July 19, 2010




Vento das palmas

Mineiro lembra das passagens de José Saramago por BH



Por Afonso Borges




Estava chegando em casa cheio de compras. Toca o celular:

- Afonso, é o Chico. Tudo bom?

Eu, lotado de sacolas, me liga um Chico, pensei... o que vou responder?

Quando ele repete o nome, me passam uma dezena de músicas pela cabeça. '''Estava à toa na vida... Bárbara...'' e respondi, ligeiramente normal:

- Oi, Chico, tudo bem, como vão as coisas?

Ele me convida para o jantar na casa dele, dias depois, quando faria o lançamento de José Saramago no Rio de Janeiro. As lembranças do bom José vão e vem. Fui buscá-lo no aeroporto com o meu lépido Gol dupla carburação a álcool. Cordial e cansado, entrou na frente, ao meu lado. Atrás, o editor da Companhia das Letras, Luiz Schwarcz, e a assessora de imprensa Ruth Lanna. Tudo bem, até o cônsul de Portugal em BH se aboletar, transformando o carro no que ele era de verdade - uma lata de sardinha. Toca o celular. Uma ligação de Portugal, um senhor esbaforido, procurando o José. Eu tinha um auricular ligado ao aparelho, entreguei ao José. Ele perguntou o que era aquilo. Confuso no trânsito, pedi para ele colocar no ouvido. Ele o fez, espantado. Conversou brevemente, desligou.

- O que é isso? Milagre? Perguntou, segurando o fio.

- Não, José, satélite, respondi. (Gargalhadas no carro)

- Mas podia ser milagre. Pois se pudéssemos fazer este, faríamos outros, respondeu, divertindo-se comigo.

E podem conferir: essa história está nas páginas de ''Cadernos de Lanzarote''. E ilustra bem José Saramago. Em público e nas entrevistas era polêmico, às vezes seco e duro. No trato pessoal, afável, cordial e amigo. E, principalmente, bem-humorado. Quando conheceu Tatyana, minha mulher, ela estava prestes a dar à luz a Isabella, minha primeira filha. Na segunda vez, um ano e pouco depois, estava grávida da segunda, Mariana. Ele não perdoou, antes de dar um demorado abraço:

- Mas como, Tatyana, ainda não paristes?

Na primeira vez que foi ao Palácio das Artes, menti, dizendo que tinha somente 500 lugares. Ele olhou para o alto, na coxia, e duvidou:

- Aqui se faz ópera.

Ao dar os primeiros passos no palco, as quase 2 mil pessoas o aplaudiram de pé, num estrondo.
Ele cumprimentou e, antes de sentar-se à mesa, me falou ao ouvido:

- É a primeira vez que sinto o vento das palmas, Afonso.

Lá fora, o público urrava - dezenas não conseguiram entrar. O Corpo de Bombeiros e a Polícia
tiveram que ser chamados. Até hoje ouço relatos de como a porta de vidro do Palácio suportou
a pressão do público, balançando...

Em várias ocasiões me disse ter sido Belo Horizonte a cidade que o recebera melhor no Brasil. Desde a primeira vez, no Luminis Espaço Empresarial completamente entupido, até a última, no lançamento de Intermitências da Morte. É de Minas o seu único título brasileiro de Doutor Honoris Causa, em 1999, concedido pela UFMG, em um emocionado evento, no qual foi saudado pelo professor Vander Melo Miranda. Mesmo esgotado, fazia questão de autografar livros após o debate. E, mesmo assim, não perdia o humor.

Desde a primeira vez, a empresária Angela Gutierrez o recebia em casa para um almoço mineiro. Perto dos 80 anos, ele traçava com prazer a comida, sem dó nem piedade. E cultivava a permanência das amizades, sempre atento a um comentário, cordial. Não demos sorte com o mundo eletrônico. Uma televisão foi convidada para gravar a palestra,no Palácio das Artes. Por problemas técnicos, o programa se perdeu. Minha esperança era o dia seguinte, no Teatro Nelson Rodrigues, no Rio de Janeiro, quando uma outra equipe de TV foi contratada. E que também perdeu o programa, devido a defeitos no equipamento.

Em tempo: estiveram presentes no Rio de Janeiro cerca de mil pessoas. Em BH, mil e setecentas. Muito ainda por contar, e que a memória oculta. As conversas nos camarins, a doce e firme presença de Pilar Del Rio, sua companheira, os pequenos segredos. Mais dois momentos: no aeroporto da Pampulha, quando nos encontramos com José e Guita Mindlin. Dois apaixonados pelos livros.

Uma bonita lembrança. E o último, ao final dos autógrafos, no Rio de Janeiro, quando ele segurou a minha mão, firme, e disse, ao lado de Pilar:

- Nos vemos daqui a pouco, na casa do Chico?

- Sim, menti. Não fui ao jantar. Coisa de mineiro bobo, envergonhado. Fica para uma outra vida.


Nota: Afonso Borges, o autor desta crônica relatando a passagem de José Saramago por terras mineiras, é o responsável pela criação, coordenação e desenvolvimento do “Sempre Um Papo”.
Idealizado há 23 anos, o Projeto é considerado, hoje, um dos mais respeitados projetos de incentivo à leitura do Brasil, com mais de dois mil eventos realizados, com a presença de mais de um milhão de pessoas, em 27 cidades, de oito estados, além do Distrito Federal.
José Saramago esteve em Belo Horizonte mais de uma vez particiando do Sempre Um Papo.

A Música Que Toca Sem Parar:
Orchestra Marrabenta Star De Moçambique, Nwahulwana, canção feita de sopro e de vento.

Saturday, July 17, 2010

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É março ou abril?
É um dia de sol
perto do mar,
é um dia
em que todo o meu sangue
é orvalho e carícia.

De que cor te vestiste?
De madrugada ou limão?
Que nuvens olhas, ou colinas
altas,
enquanto afastas o rosto
das palavras que escrevo
de pé, exigindo
o teu amor?

É um dia de maio?
É um dia em que tropeço
no ar
à procura do azul dos teus olhos,
em que a tua voz
dentro de mim pergunta,
insiste:
Se te fué la melancolia,
amigo mío del alma?

É junho? É setembro?
É um dia
em que estou carregado de ti
ou de frutos,
e tropeço na luz, como um cego,
a procurar-te.

Eugénio de Andrade

A Música Que Toca Sem Parar:
Va Safy Va Lomo - Orchestra Marrabenta Star De Mocambique

Thursday, July 15, 2010

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Aquele incômodo dedinho que dói

Quando estamos tristes, tudo fica pior.
É como quando estamos com um dedo do pé machucado e temos aquela impressão de que sempre o estamos batendo pelos cantos por onde passamos.
Não percebemos que sempre o batemos pelos cantos, desde que nascemos e aprendemos a caminhar, mas que não o sentimos porque ele só dói, quando realmente está machucado.
E não estamos com o dedinho do pé machucado, sempre.
Ou estamos?
Quando estamos nesses dias plúmbeos em que o corpo inteiro se transforma num grande dedinho machucado, ficamos expostos demais, sensíveis demais, fragilizados demais.
Um engarrafamento no trânsito torna-se uma calamidade de proporções tsunâmicas, a derrota do time de coração trucida tanto quanto a perda de um ente querido, e por aí vai.
Só dói quando eu respiro, posso afirmar. Por isso tento aprender a respirar mais miudinho.
Ando meio assim ultimamente, de braço dado com a tristeza, enamorado dela, mas pensando numa possibilidade de fugir do altar.
Dona Tristeza que fique solteira!
Meu médico falou em depressão. Recusei o diagnóstico.
Depressão é coisa de bacana. Ando triste. E pronto.
E não adianta culpar a descoberta de que Obama não é Superman, que os impostos aumentaram e as benesses escassearam, que o verão foi um arremedo ou que ganhamos mais uma nova ruga e acumulamos outros fios brancos entre os cabelos que restaram.
Não tem jeito.
Às vezes penso que nascemos com esse gen da dor, e que passamos a vida inteira tentando dar-lhe um nó.
Inventamos paixões, as transmutamos em amor, fazemos filhos, depositamos neles a esperança de que sejam tudo aquilo que jamais seremos, devoramos livros, viajamos pelo mundo, pregamos diplomas na parede, nos empanturramos de lagosta e vinho.
Quando não dá para tanto, mastigamos couve e arrotamos caviar.
Tudo para driblar o gen da dor. Nem sempre conseguimos, obviamente.
Quem não tem o suficiente para pagar o analista – ou não acredita nisto -, tenta arranjar uma comadre.
Conversar faz bem, eu sei. Mas anda cada vez mais difícil encontrar alguém que nos escute mais do que tenha a nos dizer.
Hoje em dia todo mundo tem tanto a dizer... E nem tudo nos faz sentido.
Terei me tornado egoísta demais?
Na falta de grana pro analista ou de uma comadre para chorar em seu colo, dei de falar sozinho ultimamente. Mas nem eu próprio tenho tido paciência para tantas lamentações.
Religião, não. Obrigado.
Deus deve estar com a agenda cheia. E a fila é enorme.
E, pegar fila é outra coisa que deprime qualquer cristão. Mesmo cristãos não tão cristãos assim, como esse do dedinho machucado que batuca no teclado desse computador.
Reaprendo na marra, a ‘catilografar’ com o dedo indicador.
E assim termino mais um texto.
E assim eu venço mais um dia.
Pode ser que amanhã já não doa tanto.
Pode ser até que já não doa mais.

A Música Que Toca Sem Parar:
de Caetano Veloso, na interpretação lindíssima da maranhense Rita Ribeiro, Oração ao Tempo.

És um senhor tão bonito
Quanto a cara do meu filho
Tempo tempo tempo tempo
Vou te fazer um pedido
Tempo tempo tempo tempo...

Compositor de destinos
Tambor de todos os rítmos
Tempo tempo tempo tempo
Entro num acordo contigo
Tempo tempo tempo tempo...

Por seres tão inventivo
E pareceres contínuo
Tempo tempo tempo tempo
És um dos deuses mais lindos
Tempo tempo tempo tempo...

Que sejas ainda mais vivo
No som do meu estribilho
Tempo tempo tempo tempo
Ouve bem o que te digo
Tempo tempo tempo tempo...

Peço-te o prazer legítimo
E o movimento preciso
Tempo tempo tempo tempo
Quando o tempo for propício
Tempo tempo tempo tempo...

De modo que o meu espírito
Ganhe um brilho definido
Tempo tempo tempo tempo
E eu espalhe benefícios
Tempo tempo tempo tempo...

O que usaremos prá isso
Fica guardado em sigilo
Tempo tempo tempo tempo
Apenas contigo e comigo
Tempo tempo tempo tempo...

E quando eu tiver saído
Para fora do teu círculo
Tempo tempo tempo tempo
Não serei nem terás sido
Tempo tempo tempo tempo...

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Tempo tempo tempo tempo
Num outro nível de vínculo
Tempo tempo tempo tempo...

Portanto peço-te aquilo
E te ofereço elogios
Tempo tempo tempo tempo
Nas rimas do meu estilo
Tempo tempo tempo tempo...

Tuesday, July 13, 2010

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Aqueles que conheço e que partem

Dizem-nos que está tudo bem: apesar de batermos
de porta em porta, e de vermos quadros pendurados
compulsivamente e com rasgões aleatórios
de loucura.

Procuramos saber nesse dia como
desapareceram, se foi de repente, se deixaram
cartas a avisar, se pediram mais um conhaque antes
de se despedirem, ou se simplesmente
fecharam a porta e ficaram do lado de lá.

E encontramos silêncio nas respostas.
Tudo aquilo a que nos propomos conhecer fica envolto
em lençóis escuros que deixaram lavados - e ainda
quentes -com beatas de cigarro ao lado da cama, com revistas
folheadas e abertas por cima das almofadas.

Percorremos o resto da casa, chegamos
por fim à porta de entrada onde tudo continua
intacto, insanamente preservado, como se ainda hoje
nos sentássemos aqui, a olhar para a televisão, a ver
os nossos dias - a imaginar as casas, os filhos, os
empregos - e a continuar de olhos abertos, as mãos a
mexerem em folhas riscadas sem quaisquer palavras.

Mas, de quando em vez, decidimo-nos a escrevê-las, para que
se sinta menos a despedida - como que se ela não existisse
ou como que se nada fosse dito naquele momento.

E de qualquer forma, os corpos afastam-se,
ininterruptamente,
a passo lento; olhamos a estrada ao longe com as roupas
a assemelharem-se a sonhos quebrados, com as mãos por
fim
cheias de algo que não conhecemos - com a cabeça longe
em mundos distantes do nosso.

Crescemos assim. Habituamo-nos a ver aqueles que
conhecemos
de costas para nós, a mão direita a acenar rente à anca,
num gesto esquecido de dizer adeus, para que haja algo a
separar-nos
para além de cartas.

A partir daí, será como uma fotografia desfocada:
relembraremos
aquele que partiu, naquele dia, a agitar a mão para nós
como se não estivéssemos ali; as costas ocupadas com
malas e rostos
e nós a bater a portas de quem não conhecemos, a
anunciar
que este ou aqueloutro partiu.

Por fim, deixamos de os conhecer - deixamos de lembrar
os lençois
quentes, as revistas abertas a meio, em artigos de
saudade
ou de descrições vagas sobre sexo; deixamos de ver arder
as
beatas de cigarro no cinzeiro azul, ao lado da cama;
esquecemos que
deixámos a porta aberta com a corrente de ar a crescer
por
dentro de nós: e a imagem da tua mão a acenar,
ligeiramente,
junto à anca, e eu a lembrar o teu rosto, apesar de me
dizerem
que está tudo bem.

Sérgio Xarepe in
"Outros dias existe muitos"
Corpos Editora
Dezembro 2008


A Música Que Toca Sem Parar:
de Djavan e Orlando Moraes, A Rota do Indivíduo.

Mera luz que invade a tarde cinzenta
E algumas folhas deitam sobre a estrada
O frio é o agasalho que esquenta
O coração gelado quando venta
Movendo a água abandonada
Restos de sonhos sobre um novo dia
Amores nos vagões, vagões nos trilhos
Parece que quem parte é a ferrovia
Que mesmo não te vendo te vigia
Como mãe, como mãe que dorme olhando os filhos
Com os olhos na estrada
E no mistério solitário da penugem
Vê-se a vida correndo, parada
Como se não existisse chegada
na tarde distante, ferrugem ou nada.

Sunday, July 11, 2010

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Um coração balançando entre dois rios

Sou cidadão americano. Sou cidadão brasileiro.
No meu coração existe amor de sobra para os dois.
Nasci no Brasil, numa casa às margens de um rio no interior de Minas Gerais.
Pedra Corrida é meu vilarejo íntimo, e o rio cuja correnteza embalou o meu nascer é chamado Rio Doce.
Mas fui abraçado por uma cidade às margens de um outro rio.
Vinte e um anos depois, foi como se tivesse dormido no Brasil e acordado num outro planeta.
Não sofri, juro.
Tudo foi se incorporando, se misturando, virando produto final e gerando um aprendizado que guardo com carinho em meu relicário.
Minha vinda para os Estados Unidos foi mais que um renascimento.
Foi mais que um reaparecimento.
Ou o reencontro com um amor que me havia sido prometido, sei lá eu por Quem.
Amei este chão que me abraçou logo à primeira vista.
E ele a mim, não tenho dúvida.
Newark acolheu-me com o carinho reservado aos filhos diletos.
E o rio que corre em seu leito, cortando as ruas cidade, é o mesmo que circula em minhas veias e eles chamam Passaic.
Sempre tive um rio em minha vida.
Um, não.
Dois.
Dois rios.
Duas pátrias.
Duas mães.
Amo as duas. E esta é uma canção de amor.
Trabalho laboriosamente de sol a sol.
Pago meus impostos.
Jurei amor a essa bandeira. A essa pátria.
E àquela que me viu nascer.
Por elas eu vou à Guerra. Por elas eu empunho um fuzil.
Eu, que trabalhei aqui desde o dia que cheguei.
Eu, que passei toda a minha vida adulta entre gente vinda dos quatro cantos do mundo.
Eu, que lavei pratos, fiz paellas num restaurante espanhol, carreguei tijolos e massa de concreto como servente de pedreiro da construção civil.
Eu, que operei empilhadeiras, carreguei caixas recheadas de computadores e componentes eletrônicos.
Eu, que servi em mesas de um restaurante e fundei, junto com dois companheiros, um jornal que existe há mais de 20 anos.
Eu, que resumi em um parágrafo minha trajetória de trabalhador nos Estados Unidos e que exprimo com alegria e gratidão o amor por esta terra. Um amor do mesmo tamanho que sinto pelo lugar que nasci.
Essa minha história pequena, sem maior importância, e que se confunde e se entrelaça com a história de vida de milhões de outros americanos adotados, que amam este torrão com a gratidão dos acolhidos.
E este sentimento que faz deste país essa grande nação.
Ingleses, irlandeses, escoceses, italianos, poloneses, portugueses, latinos, cada um representando uma peça do mosaico étnico dessa América-mãe onde estou.
Daí, quando vejo um sujeito de sobrenome O’Something, Mc'Qualquercoisa, Risoli, Risotto, ou outra “iguaria” italiana qualquer, todos eles americanos de segunda ou terceiríssima geração tratando os novos imigrantes como escória, não sinto outra coisa, que não seja decepção e tristeza.
Os antepassados destas pessoas não nasceram aqui.
Eles chegaram aqui.
Foram acolhidos e incorporados como somos hoje, ajudando a fazer desta nação o que ela é.
Ainda não vi nenhum índio americano, esses sim, os nativos originais desta terra, subindo em palanque para desancar imigrantes "legais" ou não.
E isto é, por si, uma grande lição de tolerância e vida.
Tem muita gente precisando aprender com eles.


A Música Que Toca Sem Parar:
Milton Nascimento, dele e de Márcio Borges, Benke.

Beija-flor me chamou: olha
Lua branca chegou na hora
O Beija-Mar me deu prova:
Uma estrela bem nova
Na luminária da mata
Força que vem e renova

Beija-Flor de amor me leva
Como o vento levou a folha

Minha Mamãe soberana
Minha Floresta de jóia
Tu que dás brilho na sombra
Brilhas também lá na praia

Beija-Flor me mandou embora
Trabalhar e abrir os olhos

Estrela d’Água me molha
Tudo que ama e chora
Some na curva do rio
Tudo é dentro e fora
Minha Floresta de jóia

Tem a água
tem a água
tem aquela imensidão
tem sombra da Floresta
tem a luz do coração
Bem-querer!!!

* Essa canção é o nome de um curumim do povo Kampa e é dedicada pelos autores a todos os curumins de todas as raças do mundo

Thursday, July 8, 2010

3 Poemas de David Mourão Ferreira























Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.


David Mourão Ferreira
À Guitarra e à Viola
(1954-1960)


Apenas uma boca. A tua boca


Apenas uma boca. A tua boca
Apenas outra, a outra tua boca
É Primavera e ri a tua boca
De ser Agosto já na outra boca

Entre uma e outra voga a minha boca
E pouco a pouco a polpa de uma boca
Inda há pouco na popa em minha boca
É já na proa a polpa de outra boca.

Sabe a laranja a casca de uma boca
Sabe a morango a noz da outra boca
Mas sabe entretanto a minha boca

Que apenas vai sentindo em sua boca
Mais rouca do que a boca a minha boca
Mais louca do que a boca a tua boca


Ternura


Desvio dos teus ombros o lençol
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do Sol,
quando depois do Sol não vem mais nada...

Olho a roupa no chão: que tempestade!
há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
em que uma tempestade sobreveio...

Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo...

Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!


A Música Que Toca Sem Parar:
Mark Knopfler e seu Notting Hillbillies, Your Own Sweet Way.

Monday, July 5, 2010

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O Verdadeiro Peso da Terra

Para Líria Porto

E se tudo o que disseram tiver sido mentira? E se não houver, finalmente, vida após a morte? Já imaginaram?
De um instante para o outro a chama da vida se extingue e, como uma vela apagada, deixaremos de iluminar a escuridão à nossa volta.
Assim, de repente, não mais que de repente e, como que reagindo ao movimento do dedo no interruptor, ou no botão onde Deus escreveu, em inglês, a palavra Off, chegamos ao fim.
Cessa o movimento do corpo, a memória se apaga e a estrada da vida chega ao seu final.
Acabou.
The End.
Fim.
Não há mais acerto de contas, nem purgatório, nem dono do inferno ou senhor do céu.
Não haverá São Pedro, nem Satanás para dar as boas-vindas à porta da próxima parada.
Nem céu, nem inferno, apenas o buraco negro do nada e a matéria se desintegrando, gradualmente, pasto de vermes.
Este é o ponto final. Todo mundo desce aqui.
A partir daqui, só o silêncio, a escuridão, a inércia, nada mais.
Já imaginaram?
Eu, que imaginei e fiz as contas, considero-me no lucro. Se não houver nada além, já terá valido a pena.
E valeu, porque andei de pés descalços sobre a grama orvalhada, mergulhei no doce das águas de um rio e no sal das ondas do mar. Vi o sol nascer e se pôr, conheci o amor, gerei crianças perfeitas, lindas.
Fui abraçado por mornas manhãs, fiz serenatas em noites de lua cheia, recebi o afago do vento e tomei banhos de chuva.
Li livros bons e ruins, conheci pessoas interessantes, gritei “gol”.
Chorei de alegria e de dor. Gargalhei, sorri.
Bebi a poesia de Neruda, Drummond e Lorca. Sonhei mudar o mundo e acordei, pacificado e nu, diante de um imenso deserto.
Não conheci a fome ou equivalente flagelo. Sempre existiu um cobertor para me proteger do frio e um teto como abrigo às tempestades.
Decifrei, menino ainda, o significado da palavra lar.
Fiz amigos, muitos.
E inimigos que não enchem uma mão.
Comi pão com mortadela de padaria, colhi fruta madura no pé, senti o perfume de um jasmineiro em noite de estrelas.
Nunca roubei, matei ou envergonhei quem me trouxe ao mundo. Fui abençoado por ter vindo de quem vim.
Ao longo dos anos tentei vencer a inveja e a mesquinhez. Não sei se consegui.
Mas meus pecados podem ser considerados menores, e os medos nunca me assustaram além da conta.
Saí de minha aldeia, corri trecho, visitei mundos que imaginava longínquos demais, paisagens tiradas de páginas impossíveis. Fui e voltei.
Aprendi a me arrepender dos erros e a pedir perdão, uma das tarefas mais difíceis para o ser humano.
Obra em andamento, eu sei que ainda tenho muito a melhorar. Mas não perdi a esperança.
Se tudo o que disseram durante toda a vida tiver sido mentira, não terei mais perguntas a fazer. Nem queixumes.
E me darei por satisfeito se tiver conseguido melhorar o produto final, quando tiver chegado àquela hora de ir desta para lugar nenhum.
Reduzido a simples matéria, sei que a terra me será leve, muito leve.

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A Música Que Toca Sem Parar:
Alceu Valença, dele e de seu tio Geraldo Valença, Junho.

Eu sei que é junho, o doido e gris seteiro
Com seu capuz escuro e bolorento
As setas que passaram com o vento
Zunindo pela noite, no terreiro
Eu sei que é junho!

Eu sei que é junho, esse relógio lento
Esse punhal de lesma, esse ponteiro,
Esse morcego em volta do candeeiro
E o chumbo de um velho pensamento

Eu sei que é junho, o barro dessas horas
O berro desses céus, ai, de anti-auroras
E essas cisternas, sombra, cinza, sul

E esses aquários fundos, cristalinos
Onde vão se afogar mudos meninos
Entre peixinhos de geléia azul
Eu sei que é junho!




Saturday, July 3, 2010

Morre o Poeta Roberto Piva
















O poeta Roberto Piva, 72, morreu às 15h30 deste sábado (3). Ele estava internado no InCor (Instituto do Coração), em São Paulo, desde o dia 13 de maio.
Segundo a assessoria do hospital, Piva teve falência múltipla dos órgãos em decorrência de insuficiência renal. O poeta sofria de mal de Parkinson há cerca de dez anos e descobriu um câncer na próstata, em metástase, durante a internação. Em janeiro, Piva já havia passado por uma angioplastia.
O caos da cidade de São Paulo era sua maior fonte inspiradora. Em "Paranoia", publicado em 1963 e relançado em janeiro deste ano, Piva mergulhou em "torres chumbo", na "constelação de cinza" da metrópole e em "almas inoxidáveis flutuando sobre a estação das angústias suarentas". Sua obra completa foi publicada em três volumes pela editora Globo.
O corpo de Roberto Piva será velado a partir das 23h no cemitério do Araçá, na região do Pacaembu (zona oeste de São Paulo). Às 11h deste domingo (4), o corpo seguirá para o crematório da Vila Alpina (zona leste).
Rebeldia
"O Piva é o poeta da rebelião. Fala-se muito da mitologia Piva rebelde andando pelas ruas de São Paulo, mas ele não era só isso. Ele trafegou pelo erotismo, pelo místico, ele transcendia", afirma Renata D'Elia, jornalista e escritora, amiga do poeta.
Mesmo internado, Piva manteve a postura rebelde. "Há dez dias, ele tentou fugir do hospital. Ele arrancou as sondas, estava bravo e queria sair fora. Ele detestava hospital, achava que era tudo magia negra", afirma Gustavo Benini, 32, companheiro de Piva há mais de dez anos.
Gustavo diz que, mesmo debilitado, Piva estava feliz com o reconhecimento maior de suas obras. "O Piva sempre foi rodeado de pessoas mais jovens. Com a internet e com a publicação de duas obras completas, ele será ainda mais compreendido do que é hoje. Tem até uma comunidade no Orkut em homenagem a ele", diz Gustavo.
Renata afirma que, enquanto Piva ficou internado no começo do ano para a cirurgia cardíaca, ele pediu para que os amigos levassem bloco e caneta para ele no hospital. "Piva sempre escrevia disfarçadamente, deve ter originais não editados", afirma o companheiro do poeta.


Fonte: Folha de São Paulo

Tango Maradônico
























Ensinamentos da Vida:
Um dia temos uma tristeza.
No outro, uma alegria.

Ps: E aí, Assis? Será que Mick Jagger tava lá?

A Música Que Toca Sem parar:
bem a propósito e especialmente nesta manhã de sábado, Rodrigo Leão, a belíssima Passión.
Um tango, que escuto como se escutasse um samba.
Quem disse que sou perfeito? rs

* Com um pedido de perdão (e anistia) a Juan e Soledad... Amigos argentinos que adoro. Mas, como dizemos aí no Brasil, amigos, amigos... futebol à parte.

Thursday, July 1, 2010

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Carta Aberta a Um amigo Distante


Newark, um dia qualquer do outono de 2007.

Zé de São Raimundo,
hoje tive muita saudade de você.
E tive saudade da gente naquele espaço-tempo, e de tudo aquilo em que acreditávamos.
Saudade da nossa juventude e de você com aquele cabelo djavaneado, besuntado de creme japonês, formigueiro andante pelas ruas de Governador Valadares.
Saudade das minhas camisas floridas - vela aberta ao vento -, fita do Senhor do Bonfim no pulso esquerdo, e a incerteza pulsando naquele coração que flertava com o futuro mais oculto.
Num tempo em que vivíamos na poesia, ingênuos, incautos, verdes, acreditávamos que sobreviveríamos da palavra e que encontraríamos no ritual de esculpir verbos um meio de vida e sobrevida.
Ledo engano, Zé, como tantos outros.
Achávamos que um governo petista resolveria os problemas maiores do nosso país.
Víamos em Lula a figura de um novo Messias e por incontáveis momentos reconhecemos em José Dirceu a sabedoria de um rei Salomão.
Fomos logrados, caro amigo. Feliz ou infelizmente, o tempo é o senhor de todas as verdades.
O PT caiu na vala comum e sei que já não acendemos velas para a estrela solitária.
Perdemos a inocência ao sabor das decepções.
Viver é doce e é amargo, é esta a lição tirada.
E assim vamos somando e subtraindo, botando e tirando coisas do embornal.
Das coisas que me caíram do alforje, sua amizade e presença constante estão entre as que mais fazem falta.
Perdi um referencial, um espelho no qual eu via refletir minha vontade de mudar o mundo. Baixei os braços, Zé.
Quixote sem Sancho, hoje eu toco na banda apenas pelo dever de cidadão. O que é louvável e me deixa honrado da cabeça aos pés. Mas transformei-me num contente.
Mais um.
Sinto falta de nossa amizade. Sinto falta de você em meu cotidiano conflituoso, briguento. Faz me falta o ofício de sonhar. Faz-me falta a luta.
Ao meu modo, venho vencendo a peleja pelo pão e pelo conforto. Tenho consciência disto. E gratidão.
Sempre tive certeza de que conquistaria isto (mesmo nos dias mais chuvosos!) e, apesar de minha preguiça, indisciplina e limitações mais gritantes, o fracasso já não é uma possibilidade, posto que estou no lucro faz muito tempo.
Mas, te confesso, caro amigo, que de vez em quando, adormeço com o céu azul de Minas Gerais nas retinas. E sonho com as muriçocas de São Raimundo, os lambaris da Biquinha, o ardido da pinga de Coroaci, a névoa aos pés da santa anunciando a chuva e a água cor de barro do 'rião' que ainda desliza em direção ao Espírito Santo e ao mar.
Quimera?
Quem me dera, amigo Zé.
Quero te ver em breve, se a vida assim nos permitir. Vá guardando a cachaça, que eu providencio o tira-gosto para a prosa da boa.
Vê se não some mais.
Abraço e amizade perene do
Roberto.


A Música Que Toca Sem Parar:
Caetano Veloso e Nicinha, Alguém Cantando.