Tuesday, January 26, 2010

A Música Que Toca Sem Parar

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A música que toca sem parar vem de Ferreira Gullar (a voz emoldurada pelas cordas de Nonato Luís), recitando um poema importante de sua obra.


PRIMEIROS ANOS

Para uma vida de merda
nasci em 1930
na rua dos prazeres

Nas tábuas velhas do assoalho
por onde me arrastei
conheci baratas, formigas carregando espadas
caranguejeiras
que nada me ensinaram
exceto o terror

Em frente ao muro negro no quintal
as galinhas ciscavam, o girassol
Gritava asfixiado
longe longe do mar
(longe do amor)

E no entanto o mar jazia perto
detrás de mirantes e palmeiras
embrulhado em seu barulho azul

E as tardes sonoras
rolavam
sobre nossos telhados
sobre nossas vidas .
Do meu quarto
ouvia o século XX
farfalhando nas árvores lá fora.

Depois me suspenderam pela gola
me esfregaram na lama
me chutaram os colhões
e me soltaram zonzo
em plena capital do país
sem ter sequer uma arma na mão.

(Buenos Aires, 1975)
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Carta Aberta a Um amigo Distante


Newark, um dia qualquer do outono de 2007.

Zé de São Raimundo,
hoje tive muita saudade de você.
E tive saudade da gente naquele espaço-tempo, e de tudo aquilo em que acreditávamos.
Saudade da nossa juventude e de você com aquele cabelo djavaneado, besuntado de creme japonês, formigueiro andante pelas ruas de Governador Valadares.
Saudade das minhas camisas floridas - vela aberta ao vento -, fita do Senhor do Bonfim no pulso esquerdo, e a incerteza pulsando naquele coração que flertava com o futuro mais oculto.
Num tempo em que vivíamos na poesia, ingênuos, incautos verdes, acreditávamos que sobreviveríamos da palavra e que encontraríamos no ritual de esculpir verbos um meio de vida e sobrevida. Ledo engano, Zé, como tantos outros.
Achávamos que um governo petista resolveria os problemas maiores do nosso país. Víamos em Lula a figura de um novo Messias e por incontáveis momentos reconhecemos em José Dirceu a sabedoria de um rei Salomão.
Fomos logrados, caro amigo. O tempo é o senhor de todas as verdades.
O PT caiu na vala comum e sei que já não acendemos velas para a estrela solitária.
Perdemos a inocência ao sabor das decepções.
Viver é doce e é amargo, é esta a lição tirada.
E assim vamos somando e subtraindo, botando e tirando coisas do embornal.
Das coisas que me caíram do alforje, sua amizade e presença constante estão entre as que mais fazem falta. Perdi um referencial, um espelho no qual eu via refletir minha vontade de mudar o mundo. Baixei os braços, Zé.
Quixote sem Sancho, hoje eu toco na banda apenas pelo dever de cidadão. O que é louvável e me deixa honrado da cabeça aos pés. Mas transformei-me num contente. Mais um.
Sinto falta de nossa amizade. Sinto falta de você em meu cotidiano conflituoso, briguento. Faz me falta o ofício de sonhar. Faz-me falta a luta.
Ao meu modo, venho vencendo a peleja pelo pão e pelo conforto. Tenho consciência disto. E gratidão.
Sempre tive certeza de que conquistaria isto (mesmo nos dias mais chuvosos!) e, apesar de minha preguiça, indisciplina e limitações mais gritantes, o fracasso já não é uma possibilidade, posto que estou no lucro faz muito tempo.
Mas, te confesso, caro amigo, que de vez em quando, adormeço com o céu azul de Minas Gerais nas retinas. E sonho com as muriçocas de São Raimundo, os lambaris da Biquinha, o ardido da pinga de Coroaci, a névoa aos pés da santa anunciando a chuva e a água cor de barro do 'rião' que ainda desliza em direção ao Espírito Santo.
Quimera? Quem me dera, amigo Zé.
Quero te ver em breve, se a vida assim nos permitir. Vá guardando a cachaça, que eu providencio o tira-gosto para a prosa da boa.
Vê se não some mais.
Abraço e amizade perene do
Roberto.

Monday, January 25, 2010

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Ainda te falta

Ainda te falta
dizer isto: que nem tudo
o que veio
chegou por acaso. Que há
flores que de ti
dependem, que foste
tu que deixaste
algumas lâmpadas
acesas. Que há
na brancura
do papel alguns
sinais de tinta
indecifráveis. E
que esse
é apenas
um dos capítulos do livro
em que tudo
se lê e nada
está escrito.


(Albano Martins)

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A Música Que Toca Sem Parar...

Hoje temos Abel Silva declamando A Flor e O Passageiro, de sua autoria.
Ao fundo, o violão impecável de Nonato Luís.

Sunday, January 24, 2010

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Do Mercado Central de Beagá

Fui ao Mercado Central de Belo Horizonte comprar uma panela de pedra-sabão, que pretendia trazer para New Jersey com a finalidade de incrementar minha modesta moqueca de peixe.
- Mas isto é um trambolho, ponderou meu pai. - Você vai carregar um ‘esparrame' destes no avião?
Saí sorrindo, evitando mais uma polêmica entre pai e filho, ciente de que nosso relacionamento estava inaugurando uma nova era na minha não resposta.
Uma vez no destino, acabei não resistindo e comprando um montão de tralhas numa lojinha simpática, não me preocupando com o excesso de peso que a balança da companhia aérea certamente acusaria.
Comprei um pilão de socar alho em madeira de lei, que é um charme.
Adquiri, também, um bule de café, daqueles feitos de esmalte - muito usados nas casas da roça -, juntamente com seis simplórias canequinhas que darão um aspecto jeca-chique à minha modesta cozinha.
Para meu amigo Neném Corrêa, que ganha a vida erguendo casas por aqui, descolei um jogo de marmitas de alumínio, que será muito apreciado por ele, e motivo de gozação de seus pares.
Para Fábio Portugal pensei em trazer um urinol, à guisa da mais ingênua troça. Desisti, mas os vi lá, em diversos materiais: alumínio, esmalte, ou plástico duro, nas mais variadas cores, pendurados na entrada de um bequinho onde vendiam ainda artigos de umbanda e enfeites feitos de palha e cipó.
Para meu irmão Toninho, que curte velharias decorando a sala de sua casa, comprei um prosaico ferro à brasa, pesadíssimo, que certamente comprometeria minha cota de peso no avião.
E, só não comprei mais coisas, porque fui arrastado por um amigo boquiaberto, que se recusava acreditar que, além da caixa de latinhas de skol e cinco garrafas de cachaça de Salinas já adquiridas, eu falava em incorporar alguns espetos de churrasco em diversos tamanhos.
Queria, também, um cortador de feijão, uma forminha de alumínio apropriada para fazer misto-quente, e um tacho de cobre que seria usado no feitio de doce de leite.
Não fosse pela intervenção desta alma de bom senso, teria adquirido muito mais.
Ah, amigos, como eu gostaria de ter trazido para todos vocês, um pouco do muito existente naquela imensa vitrine de vida, que é o mercado central.
Queria trazer um cheiro de umas douradas carambolas, que vi na banca de uma barraca ao lado de caquis, jambos, pitangas e cajás.
Queria trazer a essência e o perfume de alguns abacaxis maduríssimos, frutas do conde, mexericas e mangas rosa e espada, exuberantes, que vi numa outra loja.
Sem me esquecer de encher uma sacola com jilós, maxixes, quiabos, batata doce, mandioca (enxutíssima!), agrião, taioba, mostarda e limões-capeta e galego.
Para temperar nossas vidas traria uma réstia de alho em forma de trança, um "molho" de coentro e pequenos feixes de alecrim e manjericão.
Numa barraca de aves, compraria uma galinha velha, e preferência do "pescoço pelado", que traria, na esperança de conseguir alguém que nos fizesse uma canja como aquelas da lavra de nossas mães.
Poderia trazer, ainda, uns ovos de codorna, que tomaria batido com cerveja preta da marca caracu, que também viria camuflada em algum lugar da mala.
E mais umas garrafas de raízes fortes: losna, carqueja, jurubeba e boldo.
Da floricultura eu traria umas hortênsias, umas "flores de visgo", uns copos-de-leite e algumas mudas de mal-me-quer.
Queijos, requeijões, carne-de-sol, linguicinha defumada e paio, que não poderiam ser esquecidos em minha lista.
Mas ficou tudo lá, e destas coisas tantas só posso dar a notícia.
Inclusive minha mala, extraviada pela companhia aérea, e que foi localizada, pela última vez, em algum lugar de minha saudade.

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Saturday, January 23, 2010

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Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.

Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.

Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.

Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza
de que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.

Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.

Adeus.


Eugénio de Andrade

Friday, January 22, 2010

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Botequim, doce botequim!

Botequim, meu doce botequim. É assim que quem é do ramo se refere ao bom e velho boteco. E esse que é do ramo, aprecia e valoriza o lugar onde se afogam quase todas as mágoas da existência, num companheiríssimo copo de cerveja.
É lá que as feridas da vida se fecham como num passe de mágica, e as dores se revelam e abrem para o mundo, como um livro de cal e poesia.
No boteco, alegria e melancolia são servidas e bebidas no mesmo copo.
Boteco cura e cicatriza.
Meu primeiro boteco foi o do Baixinho, em São Raimundo.
Eu era adolescente, frequentava escondido do meu pai.
Lá eu jogava sinuca, futebol de mesa, dama, palitinho, truco e pif-paf. Tinha tudo pra me tornar um malandro. O medo do meu velho tratou de me "equilibrar".
Comecei a beber cedo. Obviamente, às escondidas.
No Baixinho tinha uma batata recheada com queijo e mortadela, famosa no bairro inteiro.
A pinga era de Coroaci e o limão do quintal.
De bônus, o banheiro era limpinho.
Boteco com banheiro limpo é tudo de bom.
Conheço indivíduos que, quando estão no boteco, transformam-se em outra pessoa.
Alguns viram filósofos, formulam teses esdrúxulas, salvam o mundo do diabo.
Tem também os que dão palpite na política, os que se irmanam com as fofoqueiros do bairro, os técnicos de futebol e aqueles mais saidinhos, que parecem beber cerveja com testosterona.
Tem botequeiro que quando toma umas, constrói prédios.
Outro tipo de botequeiro "compra fazenda", planta milhões de pés de café e vende gado...
Existem botequeiros sisudos, que após o primeiro gole destravam a língua e o coração.
Existem ainda os chorões, os que gostam de batucar nas mesa cantando sambas e os piadistas. São quase todos adoráveis.
Abomináveis, só os violentos, aqueles que enchem a cara e fazem tempestade em copo de água. Ou de cachaça…
Assim como a palavra saudade, o boteco é um negócio estritamente brasileiro.
Esqueçam os pubs ingleses, as bodegas mexicanas, as tascas ibéricas e todos os congêneres do planeta.
O boteco do Brasil é o que há.
De meus primeiros tempos, os que mais me marcaram, em Valadares, foram os do Ari, o do Maforte e o do Pedrão.
Ao Ari, íamos atrás da carne de rã, do cascudo com molho de alho e da Antárctica fabricada em Pirapora.
Os entendidos defendiam a tese de que era superior às produzidas nas outras cervejarias do país. O segredo, diziam, estava na água do Rio São Francisco, usada em sua fabricação.
No Maforte as carnes de caça faziam enorme sucesso. Tinha, ainda, lambarizinho passado no fubá e frito, crocante; traíra sem espinho, a dobradinha com feijão branco, farofa de testículo de boi, moela de frango ao molho de tomate (acompanhada de pão murcho),e pé de porco no caldo de feijão preto. De mais exótico, uma improvável moqueca de cobra, que nunca experimentei.
No Pedrão, íamos mais para ver as moças que passavam em frente. E beber a tal Antárctica de Pirapora.
Boteco é o habitat natural de poetas e escritores. De jornalistas e outros sonhadores. Vamos longe atrás de um bom boteco. E fazemos a propaganda depois.
Numa viagem a Vitória da Conquista, no início dos anos 80, conheci o Robertão Bar, boteco cujo cardápio era rabiscado no teto de telhas de amianto e inspirado em celebridades da época.
Bruna Lombardi era um coquetel de suco de abacaxi, vodka e leite de coco.
Sônia Braga levava cachaça, polpa de caju esmagada e um ingrediente secreto.
Vera Fisher, linda, leve e loura, era feita de rum nacional, suco de laranja, um toque de licor de hortelã e era adornada por uma flor de visgo amarela, que Robertão mandava buscar nos jardins da vizinhança.
Entre as comidinhas, tinha o caldo de feijão Incrível Hulk, a buchada à Rita Cadilac (que naqueles tempos estava longe de ser um "bucho") e a Rabada da Gretchen.
Ao final das opções, lia-se:
"O Ministério da Saúde adverte: ler o cardápio do Robertão sem beber, pode causar torcicolo e tontura".
Em Belo Horizonte, a capital mundial do boteco, a variedade chega a espantar.
Tem o Bar do Bolão, aberto 24 horas, reduto de músicos e intelectuais, que é muito legal. O rochedão (mexidão) e o macarrão ao sugo são antológicos.
Nas mesas do Bolão, os garotos do Sepultura, do Skank e do Jota Quest, amarraram parcerias e criaram o embrião de suas bandas. Tudo isto, apesar da cartolina encardida na parede, determinando:
"É proibido batucar na mesa e tocar violão".
Destaco também o Bar do Caixote (as mesas e cadeiras são caixas de cervejas vazias, desde o tempo em que os engradados eram caixotes de madeira) e o Bar Sem Porta.
É isto mesmo.
Esse, por motivos óbvios, não fecha nunca.

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Thursday, January 21, 2010


















EQUINÓCIO

Chega-se a este ponto em que se fica à espera
Em que apetece um ombro o pano de um teatro
um passeio de noite a sós de bicicleta
o riso que ninguém reteve num retrato

Folheia-se num bar o horário da Morte
Encomenda-se um gim enquanto ela não chega
Loucura foi não ter incendiado o bosque
Já não sei em que mês se deu aquela cena

Chega-se a este ponto Arrepiar caminho
Soletrar no passado a imagem do futuro
Abrir uma janela Acender o cachimbo
para deixar no mundo uma herança de fumo

Rola mais um trovão Chega-se a este ponto
em que apetece um ombro e nos pedem um sabre
Em que a rota do Sol é a roda do sono
Chega-se a este ponto em que a gente não sabe

(de Do Tempo ao Coração, 1966)
David Mourão-Ferreira

Wednesday, January 20, 2010


















A verdadeira cidade eterna

Ultimamente tenho tentado me reaproximar de Governador Valadares.
Sempre amei Valadares, cidade em que passei 17 felizes anos de minha vida.
Há muito tempo não apareço por lá.
Meu medo é o de que aquele lugar que cresci amando, já não exista mais.
Algo como um amor da adolescência que você reencontra, muitos anos depois, casada, maltratada, mãe de filhos, esperando a condução num ponto de ônibus.
Ainda não aconteceu comigo.
A Valadares da minha saudade tinha coqueiros beira-rio, ingazeiras, mangueiras onde se colhia frutas de ouro, suculentas e doces.
Em São Raimundo - o bairro que me viu crescer -, as ruas tinham nome de pedras.
Os poetas Abel Costa e Bispo Filho moravam na Esmeralda.
O meu pouso era na Topázio e os amigos de futebol, Marquinhos, Ney e Wellington Mingau viviam na Turmalina.
Joguei bola na Granada, quase namorei uma moça na Ametista, corri da polícia na Safira.
Nada grave, apenas um bando de meninos pulando a cerca de uma chácara alheia para colher carambolas, jambos, jenipapos e pitangas.
Na minha Valadares tinha campinhos de terra batida e os varzeanos Ibituruna, Democrata, Pastoril, Copevale, Covepe, Santa Helena, Everest e o inesquecível Vermelho 27.
O rio, que ainda hoje atende pelo mesmo nome, Rio Doce, tinha margens verdes, prainhas, remansos, corredeiras, e peixes de ouro e prata.
Tinha piau, tucunaré, timburé, corvina, lambari, bagre e tantos outros tipos de peixe, que eu precisaria de uma crônica inteira para tarrafeá-los.
Na cidade que resiste em minha emoção como oitava maravilha do mundo, tinha uma pracinha e uma fonte de onde jorrava uma cascata luminosa que mudava de cor.
Tinha banquinhos de cimento onde casais namoravam sem medo de assalto; tinha ainda um pipoqueiro e meninos sem camisa carregando caixas de isopor entoando o bordão: Aê o picolé! Aê a laranja!
Tinha castanheiras frondosas espalhadas às margens das estradas, ypês amarelos e roxos aos pé da serra e flamboyants que sangravam no verão.
Na Valadares - que não morrerá jamais - existia uma santa que nos abençoava do alto do pico do Ibituruna, braços sempre estendidos, sorriso enigmático anunciando chuvas.
Minha cidade eterna tinha personagens igualmente eternos, como o ceguinho Olé.
Reza a lenda que Olé teria ganho na loteria mais de uma vez, mas que continuava a esmolar pelas ruas por puro prazer.
É a mesma cidade de Adriano Dias da Silva, o Casca Grossa, lenda do radio, uma espécie de celebridade local e que acabaria se elegendo vereador.
Cidade de Beto Tranca-rua, repórter esportivo que também acabaria enveredando pela política, mesmo caminho escolhido por Júlio Tebas Avelar, homem que inventou o colunismo social nos jornais da cidade e que hoje colhe bonanças.
Naquele lugar que não morre nunca, jovens de ambos os sexos se amontoavam nas proximidades do cine Pio XII para tomar sorvete, comer cachorro quente e flertar nas noites calorentas de sábado.
Naquela cidade em que cresci, os vizinhos eram vizinhos de verdade, uma espécie de extensão da família.
Muito mais do que receitas de bolo e fofocas do cotidiano, trocavam gentilezas que iam de um pouco de pó-de-café a uma caneca de açúcar, quando a lata da casa de alguém ficava vazia.
Viravam compadres, apadrinhavam filhos uns dos outros, casavam os filhos de uns com os dos outros, consolavam-se nas tristezas, ficavam felizes nas alegrias.
Láquele lugar encantado tinha leilão de gado e barraquinhas no parque de exposições, festa junina com bandeirolas coloridas, quentão, canjica, batata doce e fogueira no pátio da igreja.
Minha cidade eterna tinha quadrilha, dias de chuva e sol, sol e chuva, e casamento de viúva.
Também tinha quermesse e novena, um padre que nos ‘passava o sabão’ e um serviço de alto-falantes que despejava Roberto Carlos, Wanderléa e Wanderlei Cardoso sobre nós.
Tinha passarinhos nos quintais: tizís, rolinhas, canários do reino, curiós, andorinhas e cuitelinhos, que muitos chamavam de beija-flor.
E tinha muito mais.
Na Governador Valadares do meu coração tinha cantos encantadores em todos os cantos, e tantas outras maravilhas, que acabou fazendo de mim esse homem estranho, que passa o resto de sua vida correndo atrás do menino e do rapaz feliz que foi.
Esse homem que passa seus dias como um cão andando em círculos, tentando morder o próprio rabo.

Tuesday, January 19, 2010














Pergunta-me

Pergunta-me
se ainda és o meu fogo
se acendes ainda
o minuto de cinza
se despertas
a ave magoada
que se queda
na árvore do meu sangue

Pergunta-me
se o vento não traz nada
se o vento tudo arrasta
se na quietude do lago
repousaram a fúria
e o tropel de mil cavalos

Pergunta-me
se te voltei a encontrar
de todas as vezes que me detive
junto das pontes enovoadas
e se eras tu
quem eu via
na infinita dispersão do meu ser
se eras tu
que reunias pedaços do meu poema
reconstruindo
a folha rasgada
na minha mão descrente

Qualquer coisa
pergunta-me qualquer coisa
uma tolice
um mistério indecifrável
simplesmente
para que eu saiba
que queres ainda saber
para que mesmo sem te responder
saibas o que te quero dizer

Mia Couto

Monday, January 18, 2010

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David Duarte, cantor e compositor cearense, dizendo Clarice Lispector.

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PS: para escutar, desliguem a música que toca sem parar.

















O ouro dos tolos

Fiquei desolado quando soube do roubo do quadro O Lavrador de Café, de Cândido Portinari. E agora que encontraram as obras surrupiadas do Masp, achei motivo bom para um sorriso.
E até abri uma garrafa de vinho raro que ganhei quando fiz quarenta anos de idade, com a promessa de que só a degustaria num momento especial.
Assim o foi.
Assim está sendo, no que escrevo, de casa, esta crônica.
Falar de desonra num país onde escândalos como os dos sanguessugas e do mensalão são verdadeiros contos de fadas pode parecer piada de salão, mas não é.
Seria uma desonra para o país, deixar cair em mãos bandidas uma peça que é – e há aqui espaço para uma acirrada discussão - a Mona Lisa das artes plásticas brasileiras.
Do pincel de Portinari brotaram ainda orquídeas que figurariam, certamente, na lista das dez mais importantes obras brasileiras de todos os tempos e que poderiam ser, a tal obra-prima ainda não oficializada de nosso povo.
Temos nossas Guernicas, nossos O Grito, nossos Girassóis.
Somos ricos. Abundantes.
No cenário nacional Portinari pariu várias obras deste quilate e importância: Os Retirantes, O Mestiço e O Café, só para citar algumas
O homem nascido no interior de São Paulo transcendeu a todos e está numa categoria diferente, à frente mesmo de outros mestres, como Di Cavalcanti e Anita Malfati.
Sou fã de Portinari, gênio que comparo a Picasso e Salvador Dali, os outros monstros sagrados de minha tríade.
Os seus quadros iluminam minhas retinas e decretam um estado de felicidade em meu coração, que só encontro naquilo que é, para mim e em mim, essencial.
É assim quando escuto um choro de Pixinguinha, um samba de Chico Buarque ou de Tom Jobim.
É assim quando revejo na televisão um gol de Pelé, um drible de Garrincha ou uma falta cobrada por Zico.
É assim quando leio um poema de Drummond ou entro em um lugar projetado por Niemeyer.
É assim quando beijo com os olhos o vôo matinal de um tucano, ou sinto o cheiro do mar de alguma praia do nosso país.
Todas as vezes que vou a São Paulo, passo pelo Masp como quem tem a obrigação e o prazer de visitar um velho e querido amigo.
E sempre reclamei das condições do Masp, totalmente negligenciado, com elevadores que não sobem e nem descem direito, e galerias sujas.
O Masp precisa de um banho de loja mas, principalmente, precisa de uma repaginada na segurança.
Colocar a tranca na porta só depois da passagem do ladrão é de uma burrice descabida, mesmo que tenhamos dado sorte neste episódio de agora.
O desaparecimento momentâneo do Lavrador de Café é aquilo que poderíamos chamar de mal-necessário, pois traz à luz esse assunto sério que o descaso com a história do Brasil. E o problema não é só no Masp.
Um exemplo gritante são as igrejas brasileiras, de onde as obras de arte sacra tem sido pilhadas sem a menor cerimônia ao longo dos anos.
Não existe ainda em nosso país um sistema efetivo que proteja e preserve a nossa memória. Nossos museus estão definhando, com muito do bom que já foi produzido enfeitando hoje salas de exposição e coleções particulares da Europa e Estados Unidos.
E isto já nem diz respeito apenas às nossas obras de arte.
A biblioteca de Jorge Amado, por exemplo, está em vias de ser mandada para qualquer lugar que a queira abrigar.
Um dos mais belos acervos literários do Brasil poderá parar em mãos estrangeiras, gratuitamente, simplesmente porque o governo (ou a iniciativa privada) nada está fazendo para que seja o contrário.
Se para senbilizar nossas autoridade for preciso um golpe relativamente baixo, apelemos, evocando a lembrança do roubo da taça Jules Rimet, aquela do tri-campeonato vencido no México, e que foi derretida pelos bandidos.
Ela virou correntinhas, brincos, pulseiras e pingentes.
E aquilo que possuia um valor histórico e afetivo imensuráveis se transformou, nas mãos dos ladrões, ouro de tolo.

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Sunday, January 17, 2010

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As palavras

Vira-as,
pega-as pelo rabo (chiai, putas),
açoita-as,
adoça-lhes a boca às reguilas,
enche-as, balões, pica-as,
chupa-lhes sangue e tutano,
seca-as,
capa-as,
pisa-as, galo galante,
torce-lhes o gasganete, cozinheiro,
depena-as,
estripa-as, toiro,
boi, arrasta-as,
fá-las, poeta,
faz que se traguem todas as tuas palavras.


Octavio Paz

Saturday, January 16, 2010

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Cabe Um Mundo

Cabe um mundo dentro da bolsa de uma mulher.
De todos os lugares curiosos deste planeta, a bolsa de uma mulher é, certamente, um dos mais peculiares e misteriosos.
O que cabe dentro da bolsa de uma mulher?
Cabe uma desorganização organizada, comecemos por aqui.
Como conseguem colocar tanta coisa dentro daquele minifúndio, é uma pergunta que desafia as leis da física e da imaginação.
Cabe um telefone celular, certamente.
Cabe um batom.
Cabe uma escova para os cabelos, posto que mulher gosta e quer estar sempre bonita.
Cabe um perfume bom, um Dolcce Gabanna ou um Bulgari. Em alguns casos, cabem os dois. Ou três. A mulher moderna gosta de andar sempre perfumada.
Cabe também utensílios de beleza, lápis para realçar a cor dos olhos, rouge e carmim.
Produtos inerentes ao universo feminino abundam na bolsa desta mulher: lixa para as unhas, fio dental, absorventes higiênicos para eventuais emergências, comprimidos para dor de cabeça e TPM.
Cabe um estojo de lentes de contato ou de aparelho ortodôntico, daqueles usados na hora de dormir.
Na bolsa desta mulher cabe uma embalagem com lenços de papel, para momentos de emoção.
Cigarros de filtro branco – se esta mulher fumar -, chicletes de mentol, isqueiro e uma barrinha de chocolate.
Um amuleto. Uma oração para proteção. Um escapulário. Cabe uma fé.
Cabe um bloquinho para anotações onde ela aponta situações, citações e frases que a marcaram.
Cabe uma agenda bonita, destas que abundam nas papelarias, com capa de papel duro e de design de última geração.
Na agenda desta mulher estão endereços e números relevantes, receitas de beleza e dicas de compras.
Óculos escuros, certamente, tem o seu lugar garantido na bolsa de uma mulher destes tempos.
Na bolsa desta mulher encontramos ainda sua carteira, sempre cheia de coisas que vão desde recibos de lojas, a cartões de crédito e fotos de pessoas queridas.
Uma foto da pessoa amada povoa, certamente, a carteira da mulher moderna. Afinal, a mulher moderna ama. Ainda ama. É inerente a alma feminina o amor e tudo que lembre esse ofício cada vez mais difícil.
E cabe, então, uma carta de amor. Ou duas.
Cabe um amor, e todas as suas delícias e dores.
Na carteira desta mulher estão todos os seus documentos: carteira de identidade, de motorista e CPF.
Na bolsa desta mulher cabe um livro. Cabe uma revista, destas direcionadas ao público feminino. Cabe uma curiosidade insaciável.
Cabe um aparelho de MP3 com a trilha sonora de sua vida: cabe U2, Morcheeba, Seal, Caetano e Djavan. Um universo de canções.
Muito mais que objetos e coisas, a bolsa de uma mulher carrega sonhos, reminiscências dos tempos e lugares por onde sua dona plantou seus pés.
Não é inverossímel encontrar um postal de Matchu-Pitchu, um mexedor de mojito guardado como souvenir de uma passagem pela Bodeguita Del Medio, em Havana, uma caixa de fósforos do Balthazar em Manhattan, uma caneta com a logomarca de algum hotel de algum lugar distante de onde essa mulher possa viver.
Cabem reminiscência da infância e passagens marcantes do quintal de seus avós.
Cabe o sabor de uma carambola ou de um abacaxi no palito.
Cabe o vôo de uma ave. O arrebatamento prateado de um peixe. O afago de um cão.
Cabe uma brisa do mar do Caribe.
Cabe uma pedra catada da rua. Um anel de bijuteria e um colar.
Na bolsa desta mulher cabem saudades do passado e planos para o futuro.
Na bolsa desta mulher cabe a saudade do futuro.
E o futuro.
Na bolsa desta mulher cabe uma mulher que é ela própria.
Na bolsa desta mulher cabe um mundo.

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Friday, January 15, 2010















Um coração de sangue


Um coração de sangue
Um coração de xisto e aço
Um coração angular e redondo
Como a pedra que te abre
Do interior do chão

Um coração solar
De granito
De carne
Curado da noite de nascença

Um coração de homem
Um coração de homem vivo
Um coração de criança ao colo
Interior
-Mais interior do que o sangue no coração que me darás-

Peço um coração
Nuclear


Daniel Faria
de Explicação das Árvores e de Outros Animais
1998
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Com rios
com sangue
com chuva
ou orvalho
com sémen
com vinho
com neve
com pranto
os poemas
sempre
são
papel molhado


Mario Benedetti

Thursday, January 14, 2010

Meu Superman
















O filósofo alemão Friedrich Nietzsche explica os passos através dos quais o Homem pode tornar um 'Super-Homem' em Assim Falou Zaratustra.
Mais adiante na história, os estudantes norte-americanos Jerry Siegel e Joe Shuster criaram o Superman, personagem das revistas de quadrinhos, que posteriormente ganharia as telas na pele de Christopher Reeve.
Uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, eu sei.
O Superman de Christopher Reeve acabou se tornando um dos maiores fenômenos do cinema em todos os tempos.
A suposta origem dos poderes do Superman é o Sol amarelo da Terra.
Em Krypton o astro é vermelho, e essa diferença de freqüência eletromagnética entre ambos os astros faria com que, de alguma forma, as células do corpo de Kal-El fossem "carregadas" como verdadeiras baterias vivas.
Descobri isto, sem tirar nem por, na Internet.
O homem de aço voava, atravessava estruturas, conseguia evitar o tombamento de um edifício, desentortava uma ponte de ferro, prendia bandidos com bravura e charme.
Seu corpo era impenetrável às balas e à inveja.
Quando não estava salvando a humanidade de inescrupulosos bandidos, era um esforçado repórter do jornal Planeta Diário.
Ironia do destino, o ator que deu a vida ao super-herói no cinema teve um fim trágico.
Amante da equitação, caiu de um cavalo num momento de lazer, ficando paralisado numa cadeira de rodas.
Seus últimos dias foram marcados pelo sofrimento.
Minha idéia de super-homem é diferente.
Em sua certidão de nascimento não consta Krypton, mas Mutum, um vilarejo remoto no Leste de Minas.
Meu super-homem trabalhou na roça até ser grande o suficiente para tentar a sorte na cidade grande.
Não se sentou num banco de escola, porque desde menino, ao invés de um lápis, empunhou uma enxada.
Ele plantou café, feijão, milho, hortaliças e cuidou da criação, amansou cavalos.
Ele, que calçou um par de sapatos pela primeira-vez aos 17 anos.
Ele, que na cidade grande, trabalhou em troca de comida e pelo direito de dormir num cubículo no fundo de um quintal.
Sua gratidão pela acolhida foi tamanha, que todos os seus filhos tiveram o nome do homem que o abrigou em sua chegada à civilização.
Conseguiu se alistar na polícia militar de Minas Gerais enxergando ali uma possibilidade única de sobrevir e criar a família.
Seu uniforme, de cor cáqui e sem nenhuma divisa nos braços, em nada se assemelhou à malha azul e vermelha dos grande herói dos quadrinhos e das telas.
Ele, que não possuía capa que lhe permitisse vôos mais altos e tinha passos miúdos, mas firmes.
Caminhou miúdo, chegou longe.
Ele, que casou e teve filhos, todos eles Carlos.
Ele, o meu pai.
Sua figura indestrutível tem sido pra mim, desde a mais tenra infância, um referencial e uma fortaleza.
Graças a ele, andei e ando de cabeça levantada pelas ruas de onde quer que meus pés pisem.
Sua honestidade era (e é!) um dos super-poderes.
A firmeza, a lealdade e a persistência eram (e são!) outros.
Hoje, meu super-homem vive momentos difíceis.
Aos 74 anos, ele trava agora uma das mais difíceis batalhas de sua vida.
Nenhum deles se chama Lex Luthor, Bizarro, Mongul, Metallo, Darkseid, Brainiac ou o Ultra-Humonóide, que foi o primeiro adversário do herói dos quadrinhos e das telas.
Seo Antônio, ou melhor, Seo Totoca, tem diante de si o desafio de nocautear um derrame cerebral que tem lhe deixado impossibilitado de caminhar e duplicou-lhe a visão.
E eu, como no tempo em que devorava com voracidade as aventuras de meu herói das revistas em quadrinhos, quero chegar ao final desta história com a sensação de que meu mito maior venceu seu inimigo.
Meu super-herói, meu superpai, tem em mim muito mais que um admirador, ele tem em mim um crente.
Meu coração e minhas preces estão com ele lá no Brasil, aqui, e em todo o lugar.
O bem vencerá.
Tenho fé.

*
















amplidão
romério rômulo

loucura é ver destroços ampliados.
anjos caídos, terra que se passa.
se anjo e homem revestem-se do medo
como encontrar a vida num só corpo?
é amplo o mundo, traduzir ausência
pode ser mais que estar qualquer de lado.
um outro ver, seu olho, esta morada
de viagens decididas pela noite
é tão mais ver o sono retalhado
que um qualquer corpo amplia madrugada.
ver o cerrado do peito ser tamanho
que assustar decide mais que ser.

o amplo do meu berro é traduzir-se
sem renegar esta amplidão que surge.

(in: Tempo Quando, 1996.)

Tuesday, January 12, 2010

.

















"corri para o telefone mas não me lembrava do teu número
queria apenas ouvir a tua voz
contar-te o sonho que tive ontem e me aterrorizou
queria dizer-te por que parto
por que amo
ouvir-te perguntar quem fala?
e faltar-me a coragem para responder e desligar
depois caminhei como uma fera enfurecida pela casa
a noite tornou-se patética sem ti
não tinha sentido pensar em ti e não sair a correr para a rua
procurar-te imediatamente
correr a cidade duma ponta a outra
só para te dizer boa noite ou talvez tocar-te
e morrer"

(Al Berto)
.

As Muitas Vidas de Guttemberg Guarabyra

O Guarabyra telefonou de São Paulo contando a novidade: estava começando a fazer um trabalho de regressão com um proeminente psicanalista brasileiro.
- Regressão, Guarabyra?
- É isto mesmo, meu camarada. Regressão!
- Sou contra a regressão. Sou progressista - dissimulei -, tentando fugir de um eminente “papo cabeça” que se anunciava.
Mas meu amigo estava entusiasmado demais para passar para o próximo tópico.
Queria, porque queria, descobrir quem fôra em vidas passadas, em que cenários teria respirado, e que parceiros tiveram a felicidade (e as dores de cabeça) de antecederem ao cidadão carioca que atende pela perigosa alcunha de Sá.
Guarabyra iria para sua segunda sessão naquela tarde, e me falou de sua conversa com o psicanalista, um freudiano ortodoxo, com consultório no elegante bairro do Morumbi.
Na primeira sessão aprendera que Freud afirmara que, os conflitos emocionais têm sempre origem na infância, e através de suas técnicas psicanalíticas, costumava fazer com que seus clientes lembrassem conflitos da tenra idade, o que já era uma prática de regressão de memória, mas com outro nome.
Contou-me ainda que um outro psicanalista, W. Reich, pregara que os conflitos emocionais instalam-se no corpo físico criando couraças energéticas, e que as nossas células possuem um código de memória desses conflitos. Baseado nessa teoria, propunha uma terapia corporal com o intuito de retornar o corpo ao seu estado original de saúde (voltando o corpo no tempo).
Era muita informação para um único telefonema.
Dois dias depois liguei para Guarabyra, que dizia-se meio barro, meio tijolo com relação à experiência:
- Ainda não regredi nada. Mas é apenas minha terceira sessão.
- E como funciona? -, quis saber.
- É assim: chego lá, deito-me, o analista coloca uma musiquinha New Age e ficamos batendo papo. Um longo papo.
E mais não disse.
Após esse telefonema, não ouvi mais dele, e só me restou ficar imaginando as descobertas que ele deveria estar fazendo durante essa total ausência de notícias. De tão intrigado, cheguei a sonhar com Guarabyra. Sonhos loucos.
Logo na primeira noite, ele tinha sido um arauto do rei Salomão.
Telefonei pra São Paulo no dia seguinte para lhe contar, mas ele estava realizando alguns shows pelo nordeste brasileiro. E aquilo não me saía da cabeça, precisava lhe relatar com urgência.
Nos dias que se seguiram, minha viagem foi tomando outros rumos. Antes de dormir, abria uma garrafa de vinho, colocava uma “musiquinha New Age”, e sonhava, meio dormindo, meio acordado, com meu amigo em situações e tempos diferentes. Até que adormecia, verdadeiramente, e a ‘visão’ se consumava num outro tempo.
Divertia-me loucamente ao caricaturá-lo em alguma dessas situações:
- Imagina quando eu lhe contar que nos idos de 1500, ele era grumete afetadíssimo na Esquadra de Pedro Álvares Cabral ...
Na noite seguinte ele já era uma requisitada prostituta dando duro no cais do porto de San Francisco, lá pelo século dezesseis. Ou um menestrel, cantando na porta de um castelo, que tinha como rei um sujeito chamado João.
E Guarabyra foi índio.
Índio australiano, como o vi. Um aborígene, correndo atrás de cangurus e tirando o couro de gigantescos crocodilos na Oceania.
Vi Guarabyra no Velho Oeste, como lugar tenente de Billy The Kid.
E na caatinga, menino ainda, amigo de infância de Virgulino Ferreira, que viria a ser conhecido depois de adulto como Lampião.
Guarabyra foi, também, confederado e escravo negro, trocado por dois cavalos e uma caixa de bourbon numa feira livre, em Boston.
Numa outra visão, ele reapareceu em Paris, tomando porres homéricos na companhia de Baudelaire e Rimbaud. Já era um poeta.
Ainda na França, em épocas diferentes, foi cortesã, alfaiate e fracassado fabricante de vinho na região de Bordeaux. Nessa última atividade, faliu ao beber, sozinho, uma de suas melhores safras.
Quanto mais eu viajava nas mil e umas existências de Gutemberg Guarabyra, menos eu tinha notícias dele.
Estava louco para lhe informar de minha “invasão de privacidade”.
Mas, num dia ele estava enfurnado no estúdio preparando o novo disco, no outro estava perdido no ‘pó da estrada’, levando seu canto pelo interior do Brasil.
Até que, cerca de 15 dias após a minha derradeira visão guarabiresca (um beduíno que perdeu seu camelo em meio a uma tempestade de areia em pleno Saara), o telefone tocou, e uma voz conhecida me saudou do outro lado:
- Tá me procurando, meu camarada?
- Estou. Não recebeu meus recados?
- Recebi, sim, mas tenho chegado tarde em casa. Você tem o péssimo hábito de dormir antes de meia-noite. Além do mais estive muito ocupado com shows e gravações do novo disco, e as minhas sessões de regressão no Morumbi.
Era a pedra de toque de que eu precisava para lhe contar tudo o que descobrira a seu respeito:
- E como está indo sua regressão? - perguntei.
- Tenho regredido bastante - disse com ares misteriosos, antes de soltar uma deliciosa gargalhada.
- Jura? Até onde “regrediu”?
- Até agora?
- É! Até agora.
- Ah, Roberto... Sei lá... Mais ou menos uns três, quatro mil reais...


*

Monday, January 11, 2010


















andamos pelo mundo
experimentando a morte
dos brancos cabelos das palavras
atravessamos a vida com o nome do medo
e o consolo dalgum vinho que nos sustém
a urgência de escrever
não se sabe para quem

o fogo a seiva das plantas eivada de astros
a vida policopiada e distribuída assim
através da língua... gratuitamente
o amargo sabor deste país contaminado
as manchas de tinta na boca ferida dos tigres de papel

enquanto durmo à velocidade dos pipelines
esboço cromos para uma colecção de sonhos lunares
e ao acordar... a incoerente cidade odeia
quem deveria amar

o tempo escoa-se na música silente deste mar
ah meu amigo... como invejo essa tarde de fogo
em que apetecia morrer e voltar

Al Berto, in 'Salsugem'


Al Berto - Poeta e editor português, de nome completo Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu a 11 de Janeiro de 1948, em Coimbra, e faleceu a 13 de Junho de 1997, em Lisboa.

Sunday, January 10, 2010


















Alencar, o rei da mentira
É claro que já menti nessa vida, mas nunca disse um ‘eu te amo’ que não tivesse sido verdadeiro. Cazuza dizia que mentiras sinceras lhe interessavam. Escorados nesse mote, muitos de meu convívio demoraram a acordar para uma realidade melhor. Outros continuaram dormindo.
À medida que fui amadurecendo, passei a evitar os pequenos deslizes. Mentir por mentir, jamais. Mas tem gente que mente por costume e o faz de tal maneira, que as mentiras se transformam em doentias verdades. São os casos patológicos.
Estes não aprenderam ainda que a verdade é tinta permanente.
É cinzel esculpindo na pedra.
Já a mentira é um paliativo.
É o rabisco da vara na areia.
E não apenas o antônimo da verdade.
A verdade pode machucar, é ferro em brasa, que marca para sempre o couro do gado.
Mas a mentira vai mais fundo, tem vocação de punhal.
A verdade pode provocar dor, mas com o tempo traz alívio e luz.
A mentira, não.
Com a mentira vem o rancor, a quebra da confiança e o desprezo.
Que fique claro: mentir e omitir são duas coisas completamente diferentes.
A omissão pode ser uma atitude com resquícios de covardia.
Mas a mentira é 100% covarde.
Conheci muito mentiroso nessa vida. Mas nenhum com a eloqüência e a cara-de-pau de um caminhoneiro de São Raimundo, o Alencar.
Mentia para impressionar, ou para tirar vantagem de situações completamente irrelevantes. A maior parte do que falava era ficção barata.
Segundo seus relatos, havia percorrido o trecho Valadares - Belo Horizonte, 360 quilômetros de estrada esburacada e perigosa em fantásticas três horas. E com o caminhão cheio de bois.
Num outro dia, aparecia no bar, pagava cachaça para todo mundo e dizia que estava comemorando os treze pontos feitos na loteria esportiva. O tempo passava e ele continuava vivendo de aluguel e comprando fiado no armazém de Zé Barbudo.
Segundo Alencar, o pára-choque amassado de seu caminhão era a prova material de que havia atropelado uma onça enorme, quase chegando a São Paulo. “Não deu para aproveitar nem o couro”, fartava-se de repetir.
Se viajava ao Rio, dizia ter almoçado na casa de Roberto Carlos e era amigo de Zico, do Flamengo. Era o rubro-negro, o rapaz. E gostava de música romântica.
Com o passar do tempo, ficou estigmatizado e ninguém mais acreditava nele.
Como começaram a ignorá-lo, resolveu se assumir mentiroso e mandou pintar, com as cores do Mengão, nos dois pára-lamas traseiros de seu caminhão Mercedes 1113, os seguintes dizeres:
Alencar, o rei da mentira!
E foi acolhido de volta.
Em todo lugar onde estivesse, a roda se fechava em torno dele e as estórias fantásticas eram garantia de entretenimento. Afinal, Alencar tinha um tio astronauta que fora à lua duas vezes, um primo que namorara a miss Brasil (uma certa Marta Rocha), e um conhecido que estudara com o ex-presidente Getúlio Vargas.
Não raro, mentia atendendo a pedidos.
Numa destas ocasiões, cruzou com a viatura da polícia rodoviária na entrada de um posto de gasolina. Os dois carros ficaram lado a lado e um patrulheiro pediu:
- Ô Alencar, conta uma mentirinha aí.
Alencar pediu desculpas, mas disse que não podia.
- Estou indo pedir socorro em Valadares. Teve um acidente a 30 quilômetros daqui e tem gente ferida espalhada pelos dois lados da estrada.
Os patrulheiros nem se despediram. Ligaram as sirenes e seguiram, em alta velocidade, na direção do horrível acidente.
Duas horas depois retornaram ao posto de gasolina e lá estava o Alencar, comendo uma picanha e bebendo uma Brahma bem gelada com outros dois caminhoneiros.
Um dos patrulheiros foi até a mesa e, de dedo em riste, mandou o seu recado nervoso:
- Escuta aqui, Alencar! Dessa vez você passou dos limites! Que brincadeira de mau gosto foi essa de dizer que tem um acidente cheio de mortos e feridos perto daqui?!
Alencar deu uma garfada na parte gorda da picanha e respondeu, impávido:
Uai, mas você não pediu para eu contra uma mentira?
E todos caíram na gargalhada.
Ninguém imaginou, no entanto, que Alencar ainda pagaria caro pelo seu estilo de vida.
Numa madrugada, acordou a mulher e disse que estava enfartando. A patroa ajeitou melhor o travesseiro, resmungou qualquer coisa e continuou a dormir.
Dois dias depois ele foi enterrado, humildemente, sem as pompas normalmente reservadas a um rei.

Saturday, January 9, 2010


















Diremos prado bosque
primavera,
e tudo o que dissermos
é só para dizermos
que fomos jovens

Diremos mãe amor
um barco,
e só diremos
que nada há
para levar ao coração

Diremos terra mar
ou madressilva,
mas sem música no sangue
serão palavras só,
e só palavras, o que diremos.

(Eugénio de Andrade)

Thursday, January 7, 2010


















"Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme.
Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d’água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...
Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas da folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono".

- Guimarães Rosa -
.



Sob a sombra de uma mangueira em flor





Jorge Amado está sentado na varanda de sua casa no céu, olhando na direção do infinito azul à sua frente. Chega o carteiro e entrega uma correspondência, que Jorge abre com mãos trêmulas. No afã de ler seu conteúdo, rasga envelope e missiva. Corre para dentro da casa ampla, apanha seus óculos de leitura sobre a escrivaninha e, à medida que os olhos vão percorrendo as linhas, abre-se um sorriso em seu rosto que rejuvenesce:

Salvador, 16 de maio de 2008.

Querido Jorge, de tudo a saudade é a invenção mais triste da qual sou conhecedora, desde o dia em que foi levado de mim, por solicitação dos anjos poetas, para rimar versos de amor no céu. Deixou-me esse céu azul cobalto, que nos dias e noites de dor pela tua ausência, fazia-me sentir um enlaço do tamanho do mar, esse mesmo mar que também me deixou e que ficou a me alimentar a alma dolorida.
De você ficou ainda essa saudade cravada em meu peito, e que eu dizia pro meu coração que tinha o cheiro da maresia, meu inesquecível Capitão de Areia.
Esta saudade, que deixou meu corpo como uma terra sem alma, ressequida, frágil, inflamada em labirintos de desejos e em supostas figuras de tua voz, tuas palavras descritas nos pastores da noite, nas canções melancólicas dos velhos marinheiros, no ABC das primeiras letras cantadas por vozes infantis.
Essa saudade que transborda em cores imagináveis e que até hoje foi a impulsora de minha certeza de te encontrar e me encantar como você sempre fez nas noites em que o Eco perdido pelo teu nome preso em minha garganta reverberava sem rota, sem direção, dentro de um vento forte como a afastar o medo do mais temido pesadelo de não mais te ver.
Parto amanhã.
Sua, sempre
Zélia.

Uma lágrima de alegria resvala o rosto de Jorge. Ele a limpa com as costas da mão. Sente-se feliz.
Abre uma gaveta, apanha caneta e papel, seus dedos deslizam rapidamente e o nanquim azul dá a saber:

Mainha!
Todas as manhãs espero pela sua chegada. Nosso encontro finalmente se avizinha. Esses quase oito anos longe de você foram de ternura e lembranças. Sinto demais a sua falta.
Já que vem da Bahia, queria pedir-lhe que me trouxesse uns grãos da areia de Itapoã. Quem me trouxesse umas gotas de água do Rio Vermelho e me enfrascasse um pouquinho da brisa que sopra do mar em Ondina.
Traga-me a lembrança do gosto de uns acarajés, do azedume dos embus de Vitória da Conquista e o aroma dos cacau de Ilhéus.
Traga-me o som de um berimbau. Traga-me uma água de cheiro e um trancelim, e o frescor que faz debaixo da mangueira de nosso quintal.
Traga-me o cântico das lavadeiras durante a lavagem das escadas do Bonfim. Traga-me um fita do Senhor do Bonfim, já arrebentada, posto que meu desejo maior se realizará amanhã.
Estar com você de novo, mainha, para que continuemos nos cumprindo, é tudo o que esse comunista, ateu, pediu a Deus.
Beijo saudoso desse que é seu.
Jorge.

Ps: Zélia morreu na tarde de sábado (18 de maio), aos 91 anos, em conseqüência de uma parada cardiorrespiratória. Seu corpo foi cremado. As cinzas da escritora serão entregues aos filhos nesta quarta-feira. No mesmo dia as cinzas serão depositadas junto às do marido, Jorge Amado, sob uma mangueira, na casa onde o casal vivia no bairro do Rio Vermelho.
Zélia e Jorge, finalmente, um Destino de amor cumprido a quatro mãos.

Tuesday, January 5, 2010













Com Trauma, Sem Prêmio


O governador do Rio de Janeiro anunciou hoje que pode se consumir um bilhão de reais para a renovação do Maracanã. Fiquei pensando com meus botões nesse absurdo de dinheiro e no que poderá se transformar o maior estádio do mundo, caso se gaste nele cada centavo, e o dinheiro seja realmente utilizado na obra e não vá parar em bolsos de empreiteiros espertalhões e políticos corruptos.
A arena de Newark, considerada uma das melhores e mais modernas do país, custou 310 milhões de dólares. E é uma beleza.
Moderna, limpa, organizada, higienizada, segura, mesmo tendo sido fincada numa localização que muitos apostavam que não daria certo.
Enganaram-se, os que torceram contra: a arena de Newark é um retumbante sucesso de publico e crítica. Estive lá ontem, assistindo um jogo de hóquei.
Talvez eu esteja mal acostumado.
As arenas americanas são maravilhosas, limpas.
Frequentei durante anos a arena do Meadowlands, em East Rutheford, considerada pelos especialistas como uma das piores do país. E lhes digo: se é a pior, imagino como possam ser as melhores.
No Madison Square Garden, em Nova York, apesar de se tratar de um complexo também bastante antigo, as condições são similares, senão melhores.
Urinóis e vasos sanitários, devidamente sanitizados, fazendo jus ao nome. Tudo funciona. E bem.
Pessoas com desajustes intestinais podem ir sem susto.
Não terão um ataque de vômito, caso esteja no meio de uma intempérie dos intestinos.
Sempre fui ao banheiro dos Meadowlands, sem me atormentar. E saí de lá absolutamente aliviado.
Nunca fui ao glorioso estádio carioca, por absoluta falta de oportunidade.
É um dos poucos estádios do mundo que realmente tenho vontade de ir.
Acho que apenas Wembley, em Londres, possui uma mística parecida. São dois templos sagrados, para os amantes do futebol.
Tomara que fique ‘show de bola’, o nosso Maracanã. E que fique à altura de seu nome.
Falávamos de estádios em Belo Horizonte, quando de minha última passagem por lá, e eu reclamava das condições dos banheiros do Mineirão. Brinquei que o governador Aécio Neves daria um Fiat zero quilômetro para a primeira pessoa que fizesse o “número dois” num dos banheiros destinados à torcida.
Juan Pablo Sorín, craque que já pisou os gramados mais sagrados do futebol, tratou de aclarar a situação: não é apenas o Mineirão que possui banheiro naquelas condições de higiene e conservação.
- Se você for ao Giuseppe Meazza, em Roma, é a mesma coisa -, disse ela com a tranquilidade que lhe é peculiar.
Sorin jogou na Espanha, na Itália, na Alemanha, Itália e Brasil. E já viajou o mundo inteiro defendendo as cores dos clubes que compõem seu currículo ou pela seleção argentina de futebol. Ele, obviamente, muito melhor do que eu, tem uma visão mais apropriada do quadro.
Alguns dias depois do encontro com Sorín, no meu ultimo Atlético x Cruzeiro, comi o famoso feijão tropeiro do Bar 13. Por seis reais, servem uma montanha de arroz, tropeiro, couve picada, bisteca de porco e um ovo frito.
Apesar de acostumado às iguarias da robusta culinária mineira, não imaginei que o legendário tropeiro do Mineirão fosse me derrubar. Mas derrubou.
Foi muito mais do que uma ode à escatologia.
Foi uma das experiências mais humilhantes de minha vida.
Um odor que não consigo descrever - e que não me sai das narinas tanto tempo depois -, provavelmente de urina de anos pichando as paredes do reduto solitário das necessidades fisiológicas, e um papel higiênico molhado sabe-se lá por qual substância líquida, e com a maciez de uma lixa destas usadas pelos marceneiros.
Na porta do banheiro, escrito a caneta e uma “tinta” marrom que imaginei não ser pasta de amendoim, ofensas a torcedores adversários, às mães destes e filosofias baratas não necessariamente apropriadas sequer à porta de banheiros de estádio de futebol.
Saí de lá completamente traumatizado, com o estômago ainda mais revirado do que entrei.
E sem o meu Fiat.


Foto de um dos banheiros do Mineirão, e que apareceu esta semana numa matéria sobre os banheiros dos estádios brasileiros, no portal Terra.














A Música que Toca Sem Parar

Cena Um
Entro no vôo Tam, que me levará a São Paulo. Dentro do meu coração toca um samba.
Antevejo o encontro com amigos queridos, uma festa em azul e uma carreata apoteótica pelas ruas de meu destino final.
Desembarco em São Paulo e reembarco quase que imediatamente para Belo Horizonte, onde Pedro Santana me espera.
Vamos até sua casa, tomo um banho para tirar a poeira de Nova York e retorno ao aeroporto para receber o cantor Renato Braz, que vem de São Paulo para se juntar a nós, nesta festa que se anuncia inesquecível.
Na volta a Confins já não tenho a companhia de Pedro, mas de seu pai Euler.
Estamos animados.
O burburinho indica que algo de grandioso está para acontecer. É sempre assim nos momentos que antecedem a grandes acontecimentos em BH.
Fica aquela atmosfera diferente.
Aquele cheiro de inusitado no ar.
Renato atravessa o saguão do aeroporto e recebo um abraço afetuoso, falamos bobagens, cantarolamos uma melodia que entoamos todas as vezes nos reencontramos, uma canção de amigos.
Testemunhamos uma manhã bonita na capital de Minas Gerais.
O céu está azul, poucas nuvens.
Flerto com os buritis na paisagem à beira da Linha verde, e meu pensamento viaja pra longe, como se buscasse uma brisa de mar.
Dentro de meu coração toca um samba.

Cena Dois
Telefonamos para Celso Adolfo ainda no carro. Ele se junta a nós no mercado central. Esgueiramo-nos entre frutas, carnes dependuradas em ganchos de alumínio, peças de artesanato e vozerio das pessoas, até que arranjamos uma mesa de fundo no Casa Cheia. Conheço bem esse lugar.
Cerveja, cachaça, canjiquinha com costelinha defumada, jiló com picadinho de pernil na chapa, indulgências que saciam muito mais que a fome. Não se é mineiro impunemente.
Cafezinhos, cigarro de palha, água mineral, um passeio para comprar queijo e pinga da boa pra levar na bagagem, euforia...
Passo no apartamento de Juan Pablo Sorín para apanhar meu bilhete para o paraíso. Pego no colo sua filhinha Elizabetta, apanho uma tangerina na fruteira, bebo água e espero um café de máquina.
Dentro do meu coração toca um samba.

Cena Três
Chegamos ao Mineirão: 61 mil pessoas superlotam o Gigante da Pampulha.
Fogos, fumaça azul, cantos de guerra. Fumo um parliament atrás do outro.
O Cruzeiro entra em campo.
Logo no primeiro minuto, o gladiador Kléber é atingido com violência na lateral do gramado. O juiz nem marca falta. Tenho um pressentimento ruim.
O jogo se arrasta nervoso e sem brilho. Minha agonia se alastra dos pés até o último fio de cabelo. Começo a ter pesadelos de olhos abertos.
Diante de mim passam cenas do maracanaço de 1950 e do desastre de Sarriá, em 82, na Espanha.
O Estudiantes catimba o jogo. O árbitro tem uma atuação pífia.
Verón come a bola no meio de campo e dá uma cátedra para quem quiser ver; Ramires some da partida, parece já ter partido para Lisboa; Kléber fica isolado e a bola não chega; Gerson Magrão é uma caricatura de lateral esquerdo.
“Coloca o Sorín, Adilson!”
Grito. Esbravejo! Mas ele parece não me ouvir.
Sofro!
No entanto, por um breve instante, chego a pensar que Deus é brasileiro.
Henrique acerta um petardo de fora da área.
Explode uma fumaça azul nas arquibancadas.
Parece que a festa acontecerá, finalmente.
Inicia-se uma espécie de dominó humano.
Torcedores caem uns sobres outros, abraçando-se, como se fossem irmãos.
Desabo sobre Renato Braz, que tenta me amparar e também cai.
Mas é gol!
Gooooooooooooooooooooool, caramba!
Gooooooooooooooooooooooooool!

Sai do meu peito um grito entalado, que me liberta de meus pecados, arrancando da sola dos pés toda e qualquer frustração cotidiana e me cobre de glórias.
Mas é alegria passageira, como um amor de verão.
O Estudiantes empata logo a seguir e vira o jogo num espaço de minutos.
Silêncio nas arquibancadas.
Procuro escutar a alegre batucada que me acompanhou desde o momento que saí do aeroporto JFK, mas nada escuto, além de uma voz a sussurrar ao meu ouvido que Diós nasció en Buenos Aires.
O samba parou de tocar, é fato.
Mas argentinos Dançam no tapete verde do Mineirão.
O que dançam eles?

Epílogo
Num bar da Avenida do Contorno, comemos e bebemos em silêncio.
Belo Horizonte está deserta. São quase 3 da manhã.
Os derradeiros boêmios chegam para a saideira .
Minha cabeça está vazia e consigo sentir uma cratera erodindo em meu peito.
Fecho os olhos, busco uma música, qualquer música, para me alentar.
E eu a escuto.
Dentro de mim toca um tango!

Monday, January 4, 2010



“Se houver uma camisa branca e preta no varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento”.
(Roberto Drummond)

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Saturday, January 2, 2010

E de novo acredito que nada do que é importante se perde verdadeiramente. Apenas nos iludimos, julgando ser donos das coisas, dos instantes e dos outros. Comigo caminham todos os mortos que amei, todos os amigos que se afastaram, todos os dias felizes que se apagaram. Não perdi nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu para sempre.
(Miguel Sousa Tavares
)
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Só mia quando eu respiro

Não consigo curar uma bronquite que me persegue há aproximadamente oito anos. Ela vem e vai, geralmente nos meses de maio e outubro e retorna, todo janeiro, esquecendo-se de que costumo estar de férias neste período, comprometendo o que deveria ser apenas total descompromisso e ameno desfrutar.
Este ano a bendita parece ter vindo pra ficar. Veio mais robusta, mais chata, mais inconveniente!
Chegou antes, no final de setembro, e me transformou numa companhia, no mínimo, incômoda.
Tenho tossido os brônquios, os bofes, e um pedaço da alma também.
Já troquei de atitude, de medicamento, de médico, mas há mais de dois meses me arrasto por aí. E isto tudo, sem falar do “gato” preso dentro do peito, felino invisível que produz um desagradável “miado”.
Mas ele só mia, quando eu respiro...
No último final de semana, a bronquite fez pacto com uma gripe e juntas me nocautearam. Dois contra um é covardia.
Foi uma gripe daquelas que desmontam o vivente. Cama, febre, muita tosse e a incontida vontade de voltar à infância, buscando refúgio no colo da mãe.
Poucas coisas combinam tanto quanto gripe e colo de mãe. E canja de galinha. E um animal de estimação por perto, que pode ser um cãozinho vira-lata, daqueles que se deitam ao pé da cama e lambem a mão da gente.
Quando eu era menino, confesso, gostava de ficar dodói.
Ganhava mimos, cafunés e a atenção absoluta de Dona Rute.
- Este menino não está comendo direito.
- Chega a estar com olheiras, coitadinho.
E lá vinha o termômetro, o chá de laranjeira, a canja, os bolinhos de chuva, os abraços mornos e tudo de bom. Tem hora que dá vontade de entrar no túnel tempo e parar ali naquele ponto da infância, bem antes do primeiro cigarro.
Falando em primeiro cigarro, fumei a vida inteira. Parei faz pouquinho.
Comecei menino ainda, com cigarros feitos de papel, partindo depois para o Continental sem filtro, conhecido mata-rato daqueles felizes idos. Quando comecei a ganhar um dinheirinho, aderi ao Hollywood, cuja propaganda mostrava carros velozes, barcos esportivos e muita gente bonita. “Ao sucesso”, dizia o reclame na televisão.
Nestes dias do politicamente correto, devem ter mudado o anúncio para algo do tipo:
Hollywood: à bronquite!
À enfisema! Ou, ao câncer.
É que, nos últimos tempos, o Ministério da Saúde do Brasil obrigou a indústria do tabaco a publicar em seus maços os perigos e conseqüências que o fumo traz. E, como se não bastasse anunciar que o Ministério da Saúde Adverte que Fumar é prejudicial à Saúde, resolveram estampar fotografias absolutamente chocantes, de pessoas esquálidas no leito da morte, bocas irrecuperavelmente estragadas, e muito mais.
E o Ministério da Saúde Adverte ainda que fumar causa câncer no pulmão; Fumar causa mau hálito, perda dos dentes e câncer de boca; Fumar causa impotência sexual; Crianças que convivem com fumantes têm mais asma, pneumonia, sinusite e alergia; Nicotina é droga e causa dependência; Quem fuma não tem fôlego para nada; Fumar na gravidez prejudica o bebê; Fumar causa infarto do coração. E muito mais.
Em minha última ida ao Brasil, vi um sujeito, que perde os pulmões mas não perde a piada, devolvendo ao garçon o maço de cigarros, ao ver que nele havia a advertência de que fumar causa impotência sexual.
- Pode trocar por um que dá câncer, que não tem problema.
E o garçon foi lá e trocou.

Friday, January 1, 2010

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"A única coisa tão inevitavel

quanto a morte é a vida"


Charles Chaplin
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Das coisas que não morrem jamais

Eu era rapazote em Governador Valadares e começava com o vício da leitura e as invencionices da escrevinhação.
Poesia foi a primeira grande fixação.
Misturava Augusto dos Anjos, Carlos Drummond de Andrade, Arthur Rimbaud e Charles Baudelaire com os catecismos de Carlos Zéfiro e as estórias do Jeca Tatu, do Almanaque Biotônico Fontoura.
Depois descobri a beleza das crônicas, o que acabou se tornando um ofício diário. Era um banquete requentado, é verdade, mas ainda sim, um banquete.
Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e Rubem Braga me eram servidos à medida que os jornais do Rio e Belo Horizonte chegavam à cidade, três dias após terem sido publicados.
Os Lima - de posses modestas -, não assinavam aquelas publicações, mas um vizinho que trabalhava numa barbearia chique do centro da cidade as trazia para mim, depois que já haviam sido lidas e relidas pela clientela e um número mais recente as substituía.
Só comecei a gostar dos romances depois de ter experimentado outros gêneros mais curtos. E bem depois. Eu não queria o compromisso duradouro da leitura.
Queria algo rápido, como uma paixão. Os jovens, em geral, são assim.
Impetuosos, apaixonados, preguiçosos e, às vezes, radicais...
Roberto Drummond entrou em minha vida às prestações, bem depois.
Ele assinava uma coluna no Estado de Minas e fazia crônica esportiva com muita poesia. Chamava Reinaldo de Baby Craque. O ponta-esquerda Joãozinho era o bailarino da Toca.
Os craques dos quais não gostava ou não aceitava eram chamados de tigres de papel.
Nunca escondeu de ninguém que era atleticano. É dele a célebre frase adotada por toda a massa carijó:

"Se houver uma camisa preta-e branca pendurada num varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento".

Roberto escrevia com maestria sobre outras coisas, também.
No Segundo Caderno do jornal, transformava Belo Horizonte na Cartagena de Garcia Marquez, na Pamplona de Ernest Hemingway.
Era ali, na fonte que borbulhava à sombra da Serra do Curral, que ele bebia a água da inspiração. Melhor do que nenhum outro escritor da capital mineira desvendou com o toque de sua pena a alma do belorizontino.
Tornava possível o amor da moça da Avenida Barbacena com o rapaz que veio do interior e foi morar em Betim.
Conversava com uma cotovia que lhe dava conselhos de cima dos postes da Rua Rio Grande do Norte.
Promovia duelos de adversários políticos ao pôr-do-sol em plena Praça do Papa, e marchava pela Afonso Pena com pobres miseráveis pedindo terra, trabalho e pão.
Li seu primeiro livro quando já vivia nos Estados Unidos e tornei-me um ardoroso fã.
Em 1988, quando fundei o Brazilian Voice, resenhei um trabalho seu, que acabara de ser lançado no Brasil.
Alguém de passagem por aqui levou-lhe o jornal e, algum tempo depois, recebi um recado dele: queria me encontrar quando fosse a BH.
Um mês depois estávamos no Dona Lucinha comendo feijão tropeiro e bebendo umas e outras. Foi impactante aquele primeiro encontro.
Passamos a nos encontrar sempre, todas as vezes que eu ia ao Brasil. E ficávamos horas a fio conversando sobre tudo e nada nos bares da capital.
Dono de uma generosidade ímpar tomava-me debaixo de suas asas fazendo-me sentir como se fosse um filho querido. O filho varão, que ele não teve.
Quando retornei aos Estados Unidos, ele já era colaborador do Brazilian Voice.
Nunca levou um tostão por suas crônicas, e dizia que um dia cobraria um dólar por cada um de seus inventos publicados no BV. Mas que isto só aconteceria depois que ele ganhasse o Nobel de literatura.
Se eu não cheguei a entrar para a sua família, ele foi, certamente, o primeiro grande nome a entrar para a família Brazilian Voice. E a honraria maior veio com a publicação do livro Hilda Furacão, seu grande sucesso literário, que ele dedicou, junto com outras pessoas, também a mim. Meu querido amigo, cujos títulos de livros tinham uma obcessão pela morte ("Quando Fui Morto em Cuba", "O dia em que Ernest Hemingway Morreu Crucificado", "A Morte de Dj em Paris" e "Os Mortos Não Dançam Valsa") me ensinou muito sobre imortalidades e o avesso de certos mistérios do ofício de viver.
Aprendi com ele que as coisas verdadeiras não morrem jamais.
Não morre o amor.
Não morre a amizade.
Não morre a gratidão.
Não morre a saudade.
Como que cumprindo uma sentença assinada por Deus, somos nós que morremos um pouquinho, a cada nascer de sol.
Morremos como morre a juventude, os arroubos desta e tudo o que for apenas paixão.

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