.
Botequim, doce botequim!
Botequim, meu doce botequim. É assim que quem é do ramo se refere ao bom e velho boteco. E esse que é do ramo, aprecia e valoriza o lugar onde se afogam quase todas as mágoas da existência, num companheiríssimo copo de cerveja.
É lá que as feridas da vida se fecham como num passe de mágica, e as dores se revelam e abrem para o mundo, como um livro de cal e poesia.
No boteco, alegria e melancolia são servidas e bebidas no mesmo copo.
Boteco cura e cicatriza.
Meu primeiro boteco foi o do Baixinho, em São Raimundo.
Eu era adolescente, frequentava escondido do meu pai.
Lá eu jogava sinuca, futebol de mesa, dama, palitinho, truco e pif-paf. Tinha tudo pra me tornar um malandro. O medo do meu velho tratou de me "equilibrar".
Comecei a beber cedo. Obviamente, às escondidas.
No Baixinho tinha uma batata recheada com queijo e mortadela, famosa no bairro inteiro.
A pinga era de Coroaci e o limão do quintal.
De bônus, o banheiro era limpinho.
Boteco com banheiro limpo é tudo de bom.
Conheço indivíduos que, quando estão no boteco, transformam-se em outra pessoa.
Alguns viram filósofos, formulam teses esdrúxulas, salvam o mundo do diabo.
Tem também os que dão palpite na política, os que se irmanam com as fofoqueiros do bairro, os técnicos de futebol e aqueles mais saidinhos, que parecem beber cerveja com testosterona.
Tem botequeiro que quando toma umas, constrói prédios.
Outro tipo de botequeiro "compra fazenda", planta milhões de pés de café e vende gado...
Existem botequeiros sisudos, que após o primeiro gole destravam a língua e o coração.
Existem ainda os chorões, os que gostam de batucar nas mesa cantando sambas e os piadistas. São quase todos adoráveis.
Abomináveis, só os violentos, aqueles que enchem a cara e fazem tempestade em copo de água. Ou de cachaça…
Assim como a palavra saudade, o boteco é um negócio estritamente brasileiro.
Esqueçam os pubs ingleses, as bodegas mexicanas, as tascas ibéricas e todos os congêneres do planeta.
O boteco do Brasil é o que há.
De meus primeiros tempos, os que mais me marcaram, em Valadares, foram os do Ari, o do Maforte e o do Pedrão.
Ao Ari, íamos atrás da carne de rã, do cascudo com molho de alho e da Antárctica fabricada em Pirapora.
Os entendidos defendiam a tese de que era superior às produzidas nas outras cervejarias do país. O segredo, diziam, estava na água do Rio São Francisco, usada em sua fabricação.
No Maforte as carnes de caça faziam enorme sucesso. Tinha, ainda, lambarizinho passado no fubá e frito, crocante; traíra sem espinho, a dobradinha com feijão branco, farofa de testículo de boi, moela de frango ao molho de tomate (acompanhada de pão murcho),e pé de porco no caldo de feijão preto. De mais exótico, uma improvável moqueca de cobra, que nunca experimentei.
No Pedrão, íamos mais para ver as moças que passavam em frente. E beber a tal Antárctica de Pirapora.
Boteco é o habitat natural de poetas e escritores. De jornalistas e outros sonhadores. Vamos longe atrás de um bom boteco. E fazemos a propaganda depois.
Numa viagem a Vitória da Conquista, no início dos anos 80, conheci o Robertão Bar, boteco cujo cardápio era rabiscado no teto de telhas de amianto e inspirado em celebridades da época.
Bruna Lombardi era um coquetel de suco de abacaxi, vodka e leite de coco.
Sônia Braga levava cachaça, polpa de caju esmagada e um ingrediente secreto.
Vera Fisher, linda, leve e loura, era feita de rum nacional, suco de laranja, um toque de licor de hortelã e era adornada por uma flor de visgo amarela, que Robertão mandava buscar nos jardins da vizinhança.
Entre as comidinhas, tinha o caldo de feijão Incrível Hulk, a buchada à Rita Cadilac (que naqueles tempos estava longe de ser um "bucho") e a Rabada da Gretchen.
Ao final das opções, lia-se:
"O Ministério da Saúde adverte: ler o cardápio do Robertão sem beber, pode causar torcicolo e tontura".
Em Belo Horizonte, a capital mundial do boteco, a variedade chega a espantar.
Tem o Bar do Bolão, aberto 24 horas, reduto de músicos e intelectuais, que é muito legal. O rochedão (mexidão) e o macarrão ao sugo são antológicos.
Nas mesas do Bolão, os garotos do Sepultura, do Skank e do Jota Quest, amarraram parcerias e criaram o embrião de suas bandas. Tudo isto, apesar da cartolina encardida na parede, determinando:
"É proibido batucar na mesa e tocar violão".
Destaco também o Bar do Caixote (as mesas e cadeiras são caixas de cervejas vazias, desde o tempo em que os engradados eram caixotes de madeira) e o Bar Sem Porta.
É isto mesmo.
Esse, por motivos óbvios, não fecha nunca.
.